CUIDADOS DE ENFERMAGEM ÀS
MULHERES SUBMETIDAS A CESARIANA NO HOSPITAL MUNICIPAL DE CACUACO DE JULHO À
SETEMBRO DE 2017
Projecto tecnológico apresentado
no Complexo Escolar Sapemua no curso de Enfermagem como requisito parcial para
obtenção de notas.
O
orientador:
Prof. Tosquito
LUANDA
2017
Durante
a gravidez, inúmeras expectativas e sentimentos rondam o quotidiano da gestante,
intensificando fantasias e ansiedades frente a um momento muito esperado, mas
cercado pelo imprevisível. A vivência do parto marca profundamente a vida das
mulheres pelas emoções positivas ou negativas experimentadas, traduzidas pela
intensidade dos sentimentos que cercam esse momento. No campo das pesquisas
científicas há um intenso debate sobre as questões relacionadas à assistência
ao parto, que tende a transformar um evento fisiológico normal em um processo
médico-cirúrgico.
Palavras-chave: Parto; Cesariana; Medicalização;
Puerpério.
During
pregnancy, many expectations and feelings surround the daily experience of the
pregnant woman, intensifying fantasies and anxieties, faced with a
much-anticipated moment, yet surrounded by the unpredictable. The experience of
childbirth profoundly marks women's lives, through the positive or negative
emotions experienced, as reflected by the intensity of emotions that occurs in
this period. In the field of scientific research, there is intense debate on
issues related to healthcare during childbirth, which tends to turn a normal
physiological event into a medical-surgical process.
Keywords: Labor; Cesarean Section;
Medicalization; Postpartum Period.
SUMÁRIO
A gravidez, o parto e a
maternidade, como outros eventos corporais, são submetidos a construções
simbólicas incorporadas e naturalizadas pelos sujeitos. Constituem temas
antropologicamente relevantes, uma vez que não se esgotam em fatos biológicos,
mas abrangem dimensões que são estabelecidas cultural, social, histórica e afectivamente.
É possível perceber a dimensão social da gravidez a partir dos diferentes modos
como ela é apreendida e vivenciada pelas mulheres em diferentes sociedades e
tempos históricos (PAIM, 1998; MIRANDA, 2012).
O nascimento de uma criança é um
acontecimento importante na vida das famílias e na construção das comunidades.
Para a mulher, o parto é uma experiência única e um acontecimento singular no
universo feminino, momento transcendente de sua vida. Durante a gravidez,
inúmeras expectativas e sentimentos rondam o quotidiano da gestante, intensificando
fantasias e ansiedades frente a um momento muito esperado, mas cercado pelo
imprevisível.
A vivência do parto marca
profundamente a vida das mulheres pelas emoções positivas ou negativas
experimentadas, traduzidas pela intensidade dos sentimentos que cercam esse
momento, com possíveis implicações para o relacionamento entre mãe e bebé e
para o desenvolvimento da criança (MALDONADO, 2002; LOPES et al., 2005). No
campo das pesquisas científicas há um intenso debate sobre as questões
relacionadas à assistência ao parto, que tende a “transformar um evento
fisiológico normal em um processo médico-cirúrgico” (OLIVEIRA; MADEIRA, 2002,
p. 134).
Considerada, no passado, um
procedimento de excepção e indicada apenas em situações de risco de morte para
gestantes, a cesariana representa um avanço na obstetrícia moderna e, quando
indicada correctamente, é benéfica tanto para a gestante quanto para o concepto
(FAÚNDES, CECATTI, 1991; MANDARINO et al., 2009). A elevação das taxas de cesariana
é um fenómeno mundial desde as últimas décadas do século XX (PATAH; MALIK,
2011). Segundo Domingues et al. (2014), em 2009 a proporção de cesarianas
superou a de partos normais do país, atingindo 52% em 2010. Essa prevalência de
cesarianas é a mais alta do mundo, ficando próxima dos valores da China (46,2%),
Turquia (42,7%), México (42%), Itália (38,4%) e Estados Unidos (32,3%) e muito
superior à Inglaterra (23,7%), França (20%) e Finlândia (15,7%) (OECD, 2011).
A cesariana é definida como o
parto de um feto por cirurgia abdominal, requerendo a incisão através da parede
uterina (BADER, 2007). A origem do termo cesariana nos remete a algumas
histórias, entre elas a Lei de César (lex cesarea) no século VIII a.C.,
a qual definia que caso a mulher morresse durante o parto o bebé deveria ser
retirado por uma incisão abdominal. Outra raiz sugere que o termo cesariano
poderia ter surgido do verbo em latim caedere, que significa cortar
(BADER, 2007).
De acordo com Parente et al.
(2010), o primeiro registo de uma cesariana realizada com sucesso data de 1500
na Suíça, realizada por Jacob Nefer, um castrador de porcos, marido de uma
parturiente que encontrava-se há vários dias em trabalho de parto.
Os mesmos autores afirmam que em
1847, o escocês James Young Simpson descobriu as propriedades anestéscas do
clorofórmio e o introduziu para aliviar a dor do parto, assim, o
desenvolvimento da anestesia, abriu portas para uma nova era na história da
cesariana.
A partir do aperfeiçoamento das
técnicas, a cesariana começou a substituir o fórceps e suas taxas foram
elevando-se devido às indicações por apresentações pélvicas, à melhoria do
diagnóstico de sofrimento fetal e às cesarianas iterativas (FABRI et al. 2002).
A cesariana iterativa é
caracterizada como aquela realizada quando a paciente apresenta antecedente de
duas ou mais cesarianas (NOMURA; ALVES; ZUGAIB, 2004).
A cesariana é um procedimento
cirúrgico — com incisões feitas na parede abdominal e na parede uterina
(CUNNINGHAM et al., 2012) — desenvolvido com o intuito de reduzir o risco de
complicações maternas e fetais durante a gravidez e o parto (PATAH; MALIK,
2011). É a intervenção cirúrgica mais praticada no mundo, com estimativa de 20
milhões de cesarianas realizadas anualmente (BETRÁN et al., 2007; GIBBONS et
al., 2012).
Ao longo do século XX, os
inúmeros avanços da medicina transformaram a cesariana numa alternativa segura
ao parto vaginal quando há algum risco para a mulher ou para o feto (DIAS;
DESLANDES, 2004). O aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas e dos métodos de
anestesia reduziu o risco desse procedimento (PEREIRA; ZUGAIB, 2002), que mudou
muito quanto às suas indicações (MARTINS-COSTA; RAMOS; SALAZAR, 2011).
A cesariana é um procedimento
cirúrgico e, como tal, apresenta riscos maternos e fetais. A decisão pelo
nascimento por essa via de parto deve ser tomada em situações especiais, pelo
médico, quando os riscos do procedimento sejam suplantados pelos benefícios
(MARTINS-COSTA et al., 2002).
As principais indicações para cesariana
são classificadas em absolutas e relativas. Entre as absolutas, Montenegro e
Rezende (2011) citam placenta prévia total e parcial, malformações genitais,
tumorações prévias e desproporção cefalopélvica com feto vivo. Martins-Costa,
Ramos e Salazar (2011) mencionam cicatriz uterina corporal prévia, situação
transversa, herpes genital activo, procidência de cordão e morte materna com
feto vivo.
As indicações relativas são
classificadas em maternas, fetais e materno-fetais. As primeiras incluem cardiopatias
e pneumopatias específicas, dissecação aórtica, condições associadas à elevação
da pressão intracraniana e história de fissura retovaginal.
As fetais são sofrimento fetal,
prolapso de cordão, apresentação pélvica ou córmica, gemelidade com primeiro
feto não cefálico, gemelidade monoamniótica, macrossomia, malformações fetais
específicas, herpes genital activo e vírus da imunodeficiência humana (HIV) com
carga viral acima de 1.000 cópias/ml (MONTENEGRO; REZENDE, 2011).
Fetos com meningomielocele, hidrocefalia
e concomitante macrocrania, defeitos de parede anterior com fígado
extracorpóreo, teratomas sacrococcígenos, hidropsia ou trombocitopenia aloimune
se beneficiam do nascimento por cesariana (MARTINS-COSTA et al., 2002).
As indicações relativas
materno-fetais são cesariana prévia, descolamento prematuro de placenta com
feto vivo, placenta prévia marginal e placenta baixa, distando menos de dois
centímetros do orifício interno do colo (MONTENEGRO; REZENDE, 2011).
Segundo Martins-Costa, Ramos e Salazar
(2011), as indicações mais comuns para cesariana ocorrem nos casos de cesariana
prévia, distócia ou falha de progressão do trabalho de parto, apresentação
pélvica e condição fetal não tranquilizadora.
Amorim, Souza e Porto (2010)
buscaram na literatura as melhores evidências disponíveis sobre indicações de
cesariana e analisaram aquelas que por eles foram consideradas principais:
distócia ou falha na progressão do parto, desproporção cefalopélvica, má
posição fetal nas variedades de posição posteriores e transversas persistentes,
apresentação pélvica, de face e córmica, cesariana anterior, frequência
cardíaca fetal não tranquilizadora, presença de mecônio e centralização fetal.
Esses pesquisadores concluíram
que em nenhuma dessas situações existe indicação absoluta de cesariana, uma vez
que, mesmo na apresentação córmica, o parto normal pode ser tentado, mediante
versão cefálica externa. Nas distócias de progressão, o parto normal pode ser
alcançado mediante correcção da contractilidade uterina, porém, a cesariana é
indicada quando a desproporção cefalopélvica é diagnosticada pelo uso judicioso
do partograma (AMORIM; SOUZA; PORTO, 2010).
Para os autores, a apresentação
pélvica também pode ser corrigida com versão cefálica externa a termo, mas a
via de parto deve ser discutida com a gestante quando esse procedimento falha
ou não é realizado. Eles concluem que, “embora os riscos relativos neonatais
sejam maiores para o parto vaginal, os riscos absolutos são baixos, e a opinião
da gestante deve ser considerada” (AMORIM; SOUZA; PORTO, 2010, p. 416).
Em investigação complementar,
Souza, Amorim e Porto (2010) abordaram indicações como placenta prévia,
descolamento prematuro de placenta, vasa prévia, placenta acreta, infecção por
HIV, herpes genital, hepatites e por papiloma vírus humano (HPV), condiloma
genital, gestação múltipla, prolapso do cordão umbilical, distensão segmentar e
ruptura uterina e observaram que a cesariana está formalmente indicada em
algumas situações particulares, como na placenta prévia total.
Em outros casos, segundo os
autores, pode haver indicação de cesariana intraparto, porém, situações como
HPV e gemealidade não representam per se
indicações de cesariana (SOUZA; AMORIM; PORTO, 2010).
A cesariana expõe as mulheres e
os bebés a maiores riscos, que incluem lesões acidentais, reacções à anestesia,
infecções, embolias obstétricas, nascimentos prematuros e morte perinatais e
maternas (BRASIL, 2010a).
Martins-Costa, Ramos e Salazar
(2011), apontam que neste tipo de parto o período de recuperação é mais longo,
a morbidade materna é maior, além de maiores chances de o recém-nascido
apresentar síndrome da angústia respiratória e taquipnéia transitória.
Dentre os benefícios da cesariana
podemos citar a redução de hemorragias e a consequente diminuição de
necessidade de transfusões sanguíneas, a diminuição de incontinência urinária e
a possibilidade de planejar o parto, facilitando a organização da equipe médica
(MARTINS-COSTA; RAMOS; SALAZAR, 2011).
O Ministério da Saúde (BRASIL,
2009) considera como prejuízo da cesariana, não só factores que envolvem o
recém-nascido e a mãe, mas também questões que abrangem o Sistema Único de
Saúde - SUS. O argumento parte do fato que os bebés que nascem antes do período
normal da gestação têm 120 vezes mais chances de apresentarem problemas,
necessitando de atenção especial e requerendo cuidados em Unidades de Terapia
Intensiva Neonatal.
Opta-se pela cesariana quando
essa é realmente necessária, trazendo vantagens para mãe e para o bebé, entre
as recomendações para este tipo de parto está o risco de morte para mãe, bebé
ou binómio, gestante com eclâmpsia, gestação de mulher soropositiva, distócias,
descolamento prematuro da placenta, placenta prévia e nos casos de gestação
gemelar no qual um dos fetos encontra-se em apresentação pélvica (BRASIL,
2011a).
Um estudo realizado por Dias et
al. (2008), evidenciou que a preferência de algumas mulheres pelo parto cesáreo
parece ser baseada na crença de que a qualidade do atendimento obstétrico está
fortemente associada à tecnologia utilizada no parto operatório.
As tecnologias se apresentam como
escolhas para democratizar as relações entre os vários atores no processo da assistência
à saúde (ARAÚJO; CARDOSO, 2007). No entanto, a assistência baseada na suposta
segurança dos procedimentos médicos intervencionistas, com a marca de um tipo
de serviço cujo prestígio está associado à incorporação de tecnologia,
transformou o parto normal em um parto passível de risco.
A tecnologia médica surge como
uma resposta necessária para o controle desse risco, justificando a legitimação
social da cesariana como um procedimento rápido, seguro, indolor, moderno e
ideal para qualquer grávida, adaptando-o para que se insira no imaginário
moderno, ocidentalmente construído, de isentar a mulher da dor. Essa assistência
à saúde aparece destacadamente nas representações sociais (MANDARINO et al.,
2009; CARNEIRO, 2013).
Uma das justificativas apontadas
por diversos autores como explicação para o número elevado de cesarianas é a cesariana
“a pedido” da mulher. Cesariana a pedido, cesariana por escolha ou solicitação
da paciente é sinónimo de cesariana electiva na ausência de indicação médica
(PATAH, 2008). Sabatino (2007, p. 482) afirma que a cesariana geralmente
denominada “a pedido” da mãe “se justifica em parte porque as mulheres têm
informações erradas ou incompletas sobre o processo do parto. Relatam medo da
dor do parto”.
Profissionais de saúde apontam
como motivos ligados à paciente as percepções associadas a eventos físicos,
como o medo da dor no momento do trabalho de parto e parto e a possibilidade de
evitar dores após a cirurgia com a utilização de analgésicos, assim como a
ideia de que a cesariana permite à mulher manter a função sexual, o que seria
importante para o coito vaginal, noção de maior risco para o feto no parto
vaginal e ainda a possibilidade de marcar uma data para laqueadura (WHO, 1985;
FAÚNDES; CECATTI, 1991; SABATINO, 2007; VELHO et al., 2012).
Conforme Mazzoni et al. (2011), o
incremento nas taxas de cesariana vem sendo atribuído em parte ao pedido da
mãe. Em uma revisão sistemática sobre a preferência das mulheres pela via de
parto em uma série de países de média e alta renda, os resultados apontaram que
apenas uma minoria de mulheres de uma ampla variedade de países manifestou
preferência pela cesariana. Esses estudos demonstram que há distorções que
parecem reflectir mais uma cultura médica do que uma preferência pela gestante.
O termo de solicitação tem sido utilizado como um dos principais argumentos por
parte dos profissionais médicos para justificar a elevada incidência das
cesarianas (MAZZONI et al., 2011).
A cesariana é tida por muitas
mães como parto ideal porque ela não causa a angústia do trabalho de parto,
quer dizer, o medo do sofrimento imposto pela dor de parto (FAÚNDES; CECATTI,
1991).
As repercussões disso são
bastante sérias: as cesarianas acarretam quatro vezes mais risco de infecção
puerperal em comparação com o parto normal, geram três vezes mais risco de
mortalidade e morbidade materna por complicações pós-cesariana, elevados riscos
de prematuridade e mortalidade neonatal, dificuldade de recuperação da
puérpera, maior período de separação entre mãe e bebé — o que interfere na
amamentação —, e o aumento de gastos para o sistema de saúde.
Mas isso ainda não é assumido
pela maioria dos obstetras brasileiros, em parte porque esse tipo de operação
decreta o modelo tecnocrático do nascimento no qual esses obstetras foram
treinados (CFM, 1987; SABATINO, 2007).
O modelo da cesariana como
alternativa superior e mais moderna em termos de conforto materno com protecção
de danos sexuais e contra as potenciais lesões do parto vaginal sobre o bebé
tem sido defendido pelos profissionais como paradigma de assistência para
mulheres brancas e de alta renda. Para viabilizar esse modelo, a cirurgia deve
ser agendada antes que a mulher entre em trabalho de parto (DINIZ, 2009).
A cesariana a pedido ou indicada
é um fenómeno profundamente mais complexo, com diferentes razões, mas que
evidencia a falta de informações e a ansiedade em relação ao parto, gerada, ora
pelo desconhecimento, ora pelo temor do cuidado.
A escolha do parto natural está
muito relacionada com as expectativas das mulheres a respeito da maternidade e
com as informações que as mulheres têm de todos os tipos, sobretudo quando
estão a par das evidências científicas e das informações que circulam nos meios
ligados à humanização do parto, nas conversas com profissionais, nos diálogos
informais, depoimentos e livros (SALGADO, 2012).
Além do medo de sentir dor como
motivo para a preferência da cesariana, Melchiori et al. (2009) identificaram,
no relato de gestantes, a experiência negativa vivenciada por outras mulheres
na justificativa de opção de escolha pela cesariana.
Oliveira et al. (2002) e Barbosa
et al. (2003) apontam essas e outras razões, como a condição financeira
privilegiada das mulheres, a laqueadura tubária, a ideia de que o parto vaginal
irá alterar a estrutura da genitália, a carência de enfermeiras obstétricas nas
maternidades, problemas com o bebé e no preparo no pré-natal para o parto
vaginal.
Para algumas mulheres, o bom
parto é o “previsível”, ou seja, uma cesariana agendada com tudo organizado,
permitindo todo tipo de preparo: dirigir-se à instituição, realizar a cirurgia,
ter o bebé, retornar ao seu lar e dar sequência à vida. Porém, para outras
mulheres que desejam a via de parto normal, seus desejos não são respeitados
pelos profissionais de saúde e elas se resignam por saber que sua experiência
de submissão à cesariana foi uma “fatalidade” (SALGADO, 2012).
Quando o médico acata de imediato
o pedido de cesariana, deixa de oferecer à sua paciente a melhor ajuda que
poderia prestar para o empoderamento da mulher: a chance de examinar o
contexto, analisar e fundamentar as suas razões e assim poder entender
vantagens e desvantagens da cesariana, além de criar mecanismos para superar
seus medos (MALDONADO, 2002).
“Verifica-se, portanto, que a cultura da cesariana
como parto rápido e sem dor se encontra bastante difundida na sociedade,
apresentando-se como sustentáculo para a prática médica actual, que se utiliza
dessa concepção para justificar essa conduta para si e para os outros” (OLIVEIRA
et al., 2010, p. 36). Como assevera Davis-Floyd (1994, p. 152), a cesariana é
conceitualmente útil para a obstetrícia:
Ao transformar o nascimento em um
procedimento cirúrgico de rotina, legitima-se a obstetrícia enquanto ato
médico, pois se incorpora à sua prática um elemento central da medicina moderna
e uma das formas mais elaboradas de manipulação do corpo-máquina humana — a
cirurgia.
Muitas mulheres insistem na
cesariana, desconsiderando o parto normal, por causa de temores como “não estar
preparada”, “não aguentar”, “não dar conta do parto”, o que torna a cesariana
uma representação simbólica de evitar a concretização desses medos e suas
repercussões (MALDONADO, 2002). Há outro aspecto importante a ser considerado
nesse contexto:
A cristalização sociocultural da
ideologia da cesariana pode estar afectando também os homens, que parecem ter
assimilado os mesmos medos que as mulheres — medo da dor, do sofrimento, da
imprevisibilidade —, desempenhando, assim, uma influência desfavorável sobre
suas companheiras (CARDOSO; BARBOSA, 2012, p. 44).
Ao abordar esse assunto, Pereira
(2010) supõe que, para não manifestar seus medos e fraquezas, a mulher
desenvolve uma “subtil parceria (talvez inconsciente) com o seu médico”,
sinalizando que prefere abdicar do parto normal para não sentir dor, delegando
ao médico a tomada de decisão, ou seja, “fornecendo um aval [...] ao modelo
intervencionista da assistência obstétrica” (PEREIRA, 2010, p. 86-87).
Com a transferência da
assistência ao parto para o âmbito hospitalar e com toda a evolução
tecnológica, o parto intervencionista passou a representar, dentro da área
médica, a vitória da ciência sobre a natureza.
Nesse contexto, a perda do poder
da mulher em relação à gestação e ao parto surge do encontro de duas forças
dominadoras: “a primeira trata da dominação masculina e a segunda da
apropriação do parto pelo projecto científico denominado obstetrícia” (BOTI,
2013, p. 650).
Macedo et al. (2005, p. 309),
fazendo referência aos resultados de pesquisa desenvolvida por Progianti
(2001), enfatizam que
o processo de medicalização e a
dominação do corpo da mulher por parte dos médicos fizeram com que algumas delas
aceitassem e acreditassem que a realização de procedimentos invasivos fosse
benéfica para a evolução do parto, embora fosse também causa de dor e
sofrimento.
O médico exerce influência sobre
a mulher e sua decisão sobre a via de parto porque a autoridade médica exibe
uma poderosa onipresença, baseada na legitimidade que lhe confere seu saber e
na dependência de quem ele atende. “Por essa razão, a ‘boa paciente’ é sempre
vista como aquela que obedece sem questionar e a paciente difícil é aquela que
duvida, questiona e não abre mão de seu julgamento pessoal, expressa sua
vontade” (AGUIAR, 2010, p. 123).
Pereira (2010, p. 109) busca
apoio teórico em Maldonado (2002) para afirmar que, “quanto mais o médico se
considere onipotente, mais se considerará também um deus, vendo o paciente como
fraco, indefeso e dependente. A pessoa capta isso e passa a responsabilidade do
tratamento para o médico”. No caso das gestantes, seus temores são tão grandes
que elas preferem a passividade, ou seja, que o bebé seja extraído.
Em verdade, as mulheres, de modo geral,
ocupam, quase sempre, em nossa sociedade, uma posição de subalternidade,
resultante das relações de género que se estendem às relações com os
profissionais de saúde, marcadas, elas próprias, por situações desiguais, nas
quais a supremacia do saber científico adjudica a quem o exerce o lugar de
dominante ou opressor (ALMEIDA; SILVA, 2008, p. 350).
A mulher que recorre à
instituição pública de saúde já espera que ao ser internada passe a ser um
caso, recebendo um número de registo para sua identificação, deixando de ser
sujeito, tornando-se, então, mais uma na hora de parir (BEZERRA; CARDOSO,
2005).
Essa é uma área sobre a qual a
mulher passa a não ter mais controle e mostra uma das faces da dominação que se
exerce a partir da transformação do sujeito em objecto (PEREIRA, 2004).
Pereira (2004) afirma que a
medicina exerce a sua prática, ora de forma exagerada, intervindo demais, ora
de maneira negligente, simplesmente não agindo, e salienta que os médicos
“foram treinados para reprimir a consciência dos danos que provocam” (BOURDIEU,
1996, p. 38).
A desinformação e o tecnicismo
que envolvem o processo de hospitalização do parto favorecem um comportamento
passivo da mulher, a partir da leitura do sistema simbólico da sociedade de que
essa etapa do processo da parturição deve ter um comando técnico, colaborando
assim para delegar ao médico a decisão sobre o alívio ou não da dor no trabalho
de parto a partir de regras e preceitos (PEREIRA, 2010).
A participação do profissional
médico como promotor de uma cultura intervencionista foi destacada em estudo
nacional realizado com puérperas de clínicas privadas e públicas. De acordo com
a pesquisa, três em quatro das primíparas do sector privado e oito em dez do sector
público que tiveram o parto cirúrgico gostariam de ter tido partos vaginais.
O estudo traz situações éticas e polémicas
como a de que o obstetra promoveria os medos da parturiente associados ao parto
e superestimaria a segurança da cesariana em função de seus interesses
(FAISAL-CURY; MENEZES, 2006).
A raiz do problema está na
reprodução do modelo de parto orientado para a cesariana na formação médica;
portanto, o profissional que realiza o parto tem uma enorme parcela de
responsabilidade na preferência pela cesariana[1]
(FAÚNDES et al., 2004).
É comum os médicos considerarem
que as mulheres com baixa escolaridade são incapazes de entender informações e,
portanto, a tentativa de explicação sobre procedimentos por eles adoptados
representaria perda de tempo (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2008).
Essa negação ou omissão de
informações pode ser entendida como expressão da violência institucional contra
a parturiente, como abuso cometido em virtude das relações de poder desiguais
entre profissionais e usuários dos serviços de saúde (BOTI, 2013). Nesses
casos,
a questão do saber vem atrelada ao
mandar e, por outro lado, ao obedecer. Quem manda e quem sabe no campo da saúde
é o médico, só ele tem legitimidade para definir a situação da paciente até
para ela mesma [...] quem manda e quem sabe está identificado a quem produz o
sentido, a quem o arbitra, e define o que vai circular, pois ele é o produtor,
e quem se submete e reproduz esses conteúdos é identificado ao dominado
(PEREIRA, 2004, p. 395).
O desencontro de informações
sobre as expectativas, temores e escolhas de parto entre as gestantes e médicos
pode sugerir que há uma deficiente comunicação no pré-natal da gestante com
profissionais da saúde em geral, nas representações a respeito do parto e
nascimento relacionadas ao universo sociocultural de cada uma dessas mulheres
(MELCHIORI et al., 2009).
Pereira (2004, p. 399) constata
que a demanda por “determinadas tecnologias médicas nos períodos de gestação,
parto e puerpério é construída pelos médicos que as utilizam para manter o
poder simbólico e também para recriar a própria mítica, de serem os únicos a
dar conta de todos os aspectos da vida e do adoecer”.
Para Boti (2013), a prática do
poder do profissional de saúde, notadamente do médico, é consequência da visão
da patologização do parto e da utilização do conhecimento que ele tem sobre o
corpo como instrumento para elevação de seu status. Isso está directamente
associado ao fato de que, segundo Moreira et al. (2006), no ambiente de
pré-parto, a exposição e a intrusão alheia no corpo são considerados normais e
aceitáveis, sendo a mulher vista apenas sob o enfoque biológico[2].
Nesse processo, embora a mulher
tente buscar sua autonomia, acaba assumindo uma postura de passividade quando
deixa que o médico tome decisões por ela. “Seu protagonismo, portanto, carece
de autonomia, uma vez que ela segue o script ditado pelo modelo
biomédico e cultuado pela mídia e pela sociedade” (PEREIRA, 2010, p. 147).
Este
estudo mostrou que as mulheres precisam de mais informações sobre esse período
de vida, e que esta ação deve ser praticada durante o pré-natal, na assistência
ao parto e ao pós-parto. O atendimento à gestante deve respeitar sua cultura e
crenças, cada mulher é única e tem direito de receber atenção individualizada.
A
inserção do enfermeiro na assistência à mulher durante o ciclo gravídico
puerperal se torna relevante à medida que este profissional pode proporcionar
uma atenção humanizada e individualizada, baseada em evidências científicas,
que realmente evitem intervenções desnecessárias e que promovam uma gestação,
parto e nascimento saudáveis.
Mulheres
empoderadas terão condições de discutir sobre as questões que envolvem
situações que estão vivenciando, podendo desta forma participar como
protagonistas desse momento de vida tão especial, que é o nascimento de seus
filhos.
A
indicação da cesariana na perspectiva da mulher é pouco estudada, este se
tornou um factor limitador para o desenvolvimento da discussão dessa pesquisa,
visto a restrição de artigos, para discussão dos resultados. Desta forma outros
estudos que envolvem esta temática poderiam ser desenvolvidos no sentido se
obter informações mais amplas que envolvam a cesariana.
AGUIAR,
Janaína Marques de. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade
ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Tese (Doutorado
em Ciências) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
BRASIL.
Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Área Técnica de Saúde da
Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher.
Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
FAÚNDES,
Aníbal; CECATTI, José Guilherme. “A operação cesariana no Brasil: incidência,
tendências, causas, consequências e propostas de ação”. Cadernos de Saúde
Pública, v.7, n. 2, p. 150-173, 1991.
MALDONADO,
Maria Tereza. Psicologia da gravidez: parto e puerpério. 16. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
OLIVEIRA,
Andressa Suelly Saturnino et al. “Percepção de mulheres sobre a vivência do
trabalho de parto e parto”. Rene: Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste,
v. 11, número especial, p. 32-41, 2010.
OLIVEIRA,
Zuleyce Maria Lessa Pacheco; MADEIRA, Anézia Moreira Faria. “Vivenciando o
parto humanizado: um estudo fenomenológico sob a ótica de adolescentes”.
Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 36, n. 2, p. 133-140, 2002.
PATAH,
Luciano Eduardo Maluf. Por que 90%? Uma análise das taxas de cesariana em
serviços hospitalares privados do município de São Paulo. 2008. Tese
(Doutorado em Administração de Empresa) – Escola de Administração Hospitalar e
Gestão de Sistemas de Saúde da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.
PEREIRA,
Raquel da Rocha. Protagonismo da mulher: representações sociais sobre o
processo de parturição. 2010. Dissertação (Mestrado em Saúde e Meio
Ambiente) – Universidade da Região de Joinville, Joinville
PEREIRA,
Wilza Rocha. “Poder, violência e dominação simbólicas nos serviços públicos de
saúde”. Texto Contexto de Enfermagem, v. 13, n. 3, p. 391-400, 2004.
SABATINO,
Hugo. Atenção ao nascimento humanizado baseado em evidências científicas.
2007. Disponível em:
<www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/103758/jose-hugo-sabatino>. Acesso em:
02 jul. 2012.
VIEIRA,
Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2002.
ZORZAN,
Bianca Alves de Oliveira. Informação e escolhas no parto: perspectivas das
mulheres usuárias do SUS e da saúde suplementar. 2013. Dissertação
(Mestrado em Ciências) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
[1] Mesmo
com políticas de humanização do parto e incentivo ao parto vaginal, pode estar
havendo um bloqueio de ordem cognitivo-psicomotora (da habilidade clínica)
associada com a ordem atitudinal (ética), além da ordem económica, que impede a
redução do volume de cesariana, mesmo nas instituições que são “favoráveis” ao
parto vaginal. A transformação no saber-fazer e na postura ética correntes nos
círculos obstétricos e seu aprendizado, principalmente na sua habilidade
clínica, podem estar tendo papel importante, se não determinante (TESSER et
al., 2011, p. 8).
[2]
Mesmo que seja difícil
saber qualquer coisa dos médicos, mesmo que eles não estabeleçam uma relação
que satisfaça as pacientes, são somente eles que detêm o saber e o instrumental
tecnológico para dar conta do que ocorre no corpo e é dentro dos hospitais que
se situam os instrumentos por eles utilizados para perscrutar o corpo que sofre
ou que tem necessidade de ser examinado (PEREIRA, 2004, p. 395).
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