segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Cólera - Trabalho Completo

CAPÍTULO I
1.   FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1  DEFINIÇÃO

Tavares[1] define a cólera como uma infecção do intestino delgado por algumas estirpes das bactérias Vibrio cholerae. (TAVARES, 2009).

Ainda Horton apud Courtejoie[2] (1997) define a cólera como uma doença diarreica epidémica provocado por uma bactéria Gram Negativa.

1.2  CONCEITO

A cólera (CID A00.9)[3], conforme já vimos na definição, é uma doença infecciosa intestinal aguda causada pela enterotoxina do Vibrio cholerae. É de transmissão predominantemente hídrica.

As manifestações clínicas ocorrem de formas variadas, desde infecções inaparentes ou assintomáticas até casos graves com diarreia profusa, podendo assinalar desidratação rápida, acidose e colapso circulatório, devido a grandes perdas de água e electrólitos corporais em poucas horas, caso tais perdas não sejam restabelecidas de forma imediata. Os quadros leves e as infecções assintomáticas são mais frequentes do que as formas graves. (Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).

1.3  AGENTE ETIOLÓGICO

Segundo o Manual Integrado de Prevenção e Controle da Cólera[4] (2010), O agente etiológico da cólera é o Vibrio cholerae O1 toxigênico ou O139, bacilo Gram-negativo, com flagelo polar, aeróbio ou anaeróbio facultativo, isolado por Koch no Egipto e na Índia, em 1884, inicialmente denominado de Kommabazilus (bacilo em forma de vírgula).

Existem dois biótipos de Vibrio cholerae O1: o clássico, descrito por Koch, e o El Tor, isolado por Gotschlich em 1906, de peregrinos procedentes de Meca, examinados na estação de quarentena de El Tor, no Egipto.

Ambos os biótipos são indistinguíveis bioquímicas e antigenicamente; de igual forma, enquadram-se na espécie Vibrio cholerae e integram o sorogrupoO1, que apresenta três sorotipos, denominados Ogawa, Inaba e Hikojima. O biótipo El Torsomente foi associado a episódios graves da doença e aceito como agente etiológico em 1961,exatamente no início da 7ª pandemia.

O biótipo El Tor é menos patogénico que o biótipo clássico e causa, com mais frequência, infecções assintomáticas e leves. A relação entre o número de doentes e o de portadores com o biótipo clássico é de 1:2 a 1:4; com o biótipo El Tor, a relação é de 1:20 a 1:100.

Outro factor que favorece a disseminação do biótipo El Tor é a maior resistência deste às condições externas, que o permite sobreviver por mais tempo do que o biótipo clássico no meio ambiente. Essas características do El Tor dificultam significativamente as acções de vigilância epidemiológica e, na prática, impedem o bloqueio efectivo dos surtos de cólera, principalmente quando ocorrem em áreas com precárias condições de saneamento.

Em Outubro de 1992, ocorreu uma epidemia de diarreia coleriforme na Baía de Bengal, Índia. As cepas de Vibrio cholerae isoladas produziam toxina colérica, mas não pertenciam ao sorotipo O1. No início de 1993, foram isoladas cepas semelhantes de Vibrio cholerae nãoO1 em surtos epidémicos que se iniciaram em Calcutá, Índia, com mais de 13 mil casos, e em Dhaka, Bangladesh, com mais de 10 mil casos.

Não se conseguiu aglutinação com nenhum dos até então 138 antissoros conhecidos; considerou-se, então, que tais cepas representavam um novo sorogrupo, o Vibrio cholerae O139, também conhecido como “bengal”. Foram detectados casos em Bangladesh, China, Estados Unidos, Índia, Malásia, Nepal, Paquistão, Reino Unido e Tailândia.

Outros sorogrupos não O1 do Vibrio cholerae já foram identificados em todo o mundo, sabendo-se que podem ocasionar patologias extra-intestinais e diarreias com desidratação severa semelhante à cólera. No entanto, até o presente, tais sorogrupos têm sido associados a casos esporádicos ou a surtos muito limitados e raros de diarreia. (Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).

E de acordo com o  Departamento de Vigilância Epidemiológica[5], declara Vibrio cholerae O1, biótipo clássico ou El Tor(sorotipos Inaba, Ogawa ou Hikogima), toxigenico, e, também, oO139. Bacilo Gram-negativo, com flagelo polar, aeróbio ou anaeróbio facultativo, produtor de endotoxina.

1.4  EPIDEMIOLOGIA

A denominação ”cólera” já era usada nos primeiros séculos da Era Cristã, tendo sido descrita desde os tempos dos escritores sânscritos e de Hipócrates (400 a.C.). A história da doença sempre esteve associada à Índia, onde, segundo alguns autores, a sua transmissão é milenar.

O primeiro registo de um surto foi descrito por Gaspar Corrêa em 1503, no livro “Lendas da índia”, referindo-se ao acometimento, no exército do sultão de Calcutá, de uma doença que “provocava vómitos, sede de água, estômago ressecado, cãibras musculares, olhos turvos” e causava muito sofrimento e a morte em poucas horas.

A cólera (palavra feminina que significa “fluxo de bile”) era conhecida dos navegadores árabes e europeus nos séculos XV e XVI, em suas viagens pelos grandes deltas da Ásia Meridional. Era considerada uma “febre” própria de lugares exóticos, quando no século XIX começou a “viajar”.

A par de relatos de surtos localizados de cólera em tropas de colonizadores europeus que penetravam na região de Bengala, Índia, como o que se deu entre a frota britânica em1782, o primeiro registo de difusão da doença para outros continentes ocorreu em 1817. Desde então, a doença evoluiu e produziu, a partir da região do Golfo de Bengala, sete pandemias.

A primeira pandemia, ocorrida no período de 1817 a 1823, estendeu-se do Vale do Rio Ganges a outras regiões da Ásia e ao norte da África.

Os russos, após a invasão da Pérsia, levaram a cólera para a Europa, pela primeira vez atingida em larga escala. Deu-se início à segunda pandemia, que ocorreu no período de 1826 a1837, quando atingiu também a América a partir do México, difundindo-se ainda pelos países da América Central, América do Sul e pelos Estados Unidos.

A terceira pandemia, cujo período de transmissão vai de 1846 a 1862, determinou também uma produção intensa de casos, com o acometimento de uma série de países situados na Ásia, na África, nas Américas e na Europa. Nesta última, restringiu-se a três países: França, Itália e Espanha. A Inglaterra não foi afectada devido às severas medidas adoptadas a partir das descobertas de John Snow, com o fornecimento de água potável a toda sua população.

A sexta pandemia registou-se no período de 1902 a 1923, com epidemias severas na Ásia e surtos limitados na África e na Europa, sem atingir o Continente Americano. Neste período, a Europa permaneceu, praticamente, como área livre da epidemia; os demais países foram tidos como áreas ainda muito receptivas à difusão da doença.

As seis pandemias presumivelmente foram ocasionadas pelo biótipo clássico do Vibrio cholerae, que, pelas suas características de alta virulência, determinava um alto número de casos, milhares de mortes e um número proporcionalmente menor de portadores assintomáticos.

De igual forma, as seis sempre partilharam e seguiram o caminho dos fluxos migratórios, sejam aqueles associados aos movimentos internos, determinados pelas precárias condições de vidadas populações, sejam aqueles de longa distância, associados à circulação dos conquistadores europeus em suas colónias distantes.

Apesar de um relato sobre a cólera feito por Pizzo (1648), que a descreveu como
“afluxos diarreicos intermináveis”, a doença foi detectada pela primeira vez no Brasil
no decorrer da terceira pandemia, em 1854, no Rio de Janeiro, e em 1855, em Belém do Pará. A enfermidade havia sido importada pelo vapor brasileiro Imperatriz, procedente da Cidade do Porto, Portugal, e atingiu posteriormente outros estados das regiões Norte, Nordeste, Sul e Sudeste, tendo sido registados, até 1867, aproximadamente200 mil óbitos.

Em 1867 e 1869, no decorrer da quarta pandemia, a cólera alcançou novamente o Brasil, estendendo-se desta vez do Nordeste ao Rio Grande do Sul, além de atingir as tropas brasileiras e argentinas que lutavam na guerra do Paraguai. Durante a quinta pandemia, também foram registados surtos importantes no Brasil.

A sétima pandemia, ainda em curso, se iniciou em 1961, quando o Vibrio cholerae, biótipo El Tor, ultrapassou os limites de uma área endémica em Célebes, Indonésia, e estendeu-se a outros países da Ásia Oriental.

Reforçada pelos deslocamentos da população, mediante os movimentos migratórios, a pandemia chegou ao Bangladesh no final de 1963 e à União Soviética, ao Irã e ao Iraque em 1965 e 1966. Em 1970, a cólera invadiu a África Ocidental e se dispersou rapidamente ao longo da costa e das vias fluviais. Nos anos seguintes, a cólera adentrou em países industrializados; porém, a eficiência dos serviços de saúde, do sistema de vigilância epidemiológica e, sobretudo, das condições de saneamento ambiental não permitiu a sua instalação.
Em 1971, foi registado um caso da doença entre frequentadores de uma estação de água mineral em Portugal. A enfermidade atingiu a Itália em 1973, ano em que se registrou um caso nos Estados Unidos (Texas), de origem não identificada. Em 1974, ocorreu um caso importado no Canadá. Em 1977 e 1978, registaram-se pequenos surtos no Japão. Em 1978,ocorreram infecções esporádicas na Louisiana (EUA), com oito casos e três infecções assintomáticas.

Em 1981, um surto afectou 16 pessoas no Texas. Em 1986, foi novamente registado
um surto na Louisiana, que acometeu 18 pessoas e foi atribuído ao consumo de mariscos crus. No período de 1961 a 1989, foram notificados 1.713.057 casos de cólera à Organização mundial da Saúde (OMS), sendo a grande maioria proveniente da Ásia e da África.

Em 1994, a Europa, que vinha notificando apenas casos importados, registou um número significativo de casos autóctones no Leste Europeu. Casos esporádicos, importados, têm ocorrido em viajantes que regressaram à Europa Ocidental, ao Canadá, aos Estados Unidos e à Austrália procedentes de áreas por onde há circulação de Vibrio cholerae O1.

A propagação da doença para praticamente todo o mundo deve-se aos seguintes factores:

1)    À característica do biótipo El Tor de produzir, na maioria dos casos, infecções assintomáticas e leves, o que torna difícil identificar portadores e distinguir a cólera das outras doenças diarreicas agudas;
2)    Ao significativo incremento dos fluxos migratórios, de turismo e de comércio;
3)    Às condições precárias de saneamento, prevalentes em extensas áreas de alguns países;
4)    Aos meios rápidos de transporte;
5)    À falta de uma vacina eficaz; e
6)    Ao grau de imunidade da população.

O início da sétima pandemia na América Latina ocorreu em 1991, com a ocorrência dos primeiros casos no Peru e, posteriormente, no Brasil e em outros países sul-americanos.

Em 5 de Fevereiro de 1991, o Ministério da Saúde do Peru comunicou à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), oficialmente, a existência de um surto de cólera no país. Entre os dias 23 e 29 de Janeiro de 1991, havia sido detectado um número extremamente elevado de casos de diarreia – atipicamente, em adultos – em Chancay e Chimbote, localidades situadas no litoral peruano, ao norte de Lima e distantes, uma da outra, cerca de 400km.

Nas três semanas seguintes, a epidemia expandiu-se de forma explosiva ao largo desse litoral, estendendo-se posteriormente pelas regiões da Cordilheira dos Andes e Amazónia peruana, de forma que, entre 14 e 20 de Abril, a epidemia já havia atingido todo o país.

No decorrer de 1991, a cólera propagou-se pelo Continente Americano, atingindo 14 países, com 391.750 casos confirmados, e causando 4.002 óbitos. No ano de 1992, 20 países notificaram352.300 casos e 2.399 óbitos. Em 1993, 20 países notificaram 204.547 casos e 2.362 óbitos. No ano seguinte, em 1994, 15 países notificaram 12.612 casos e 1.229 óbitos. Deve-se salientar que 65% dos casos notificados em todo o mundo, no ano de 1993, eram procedentes de países desse continente.

De acordo com a Opas, observam-se números bastante díspares quanto às taxas de letalidade, que variam aos extremos de 16,7 para o Belize (1994) e 15,38 para a Venezuela (1991) para0 (zero) em países como Guiana Francesa, Costa Rica e a própria Venezuela em 1994.

Para interpretar tais achados, seriam necessários conhecimentos a respeito de factores que possam ter influenciado esses números, como a qualidade da assistência médica, a eficiência dos serviços de vigilância epidemiológica e os critérios utilizados para o diagnóstico de casos, entre outros. (Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).

De acordo com a um relatório da Direcção Geral de Saúde (DGS), a cólera em Angola tem vindo progressivamente a diminuir desde a epidemia de 2006, que então provocou 2.773 mortos entre os 69.476 casos registados. A queda acentuou-se no período 2007-2010, quando passou dos 18.390 casos para 1955, com o número de óbitos a decair dos 515, registados em 2007, para 45, em 2010.

Em 2011, o número de vítimas voltou a aumentar e os óbitos dispararam: 183 mortos em 2.296 casos, tendo-se registado uma ligeira descida em 2012, que apresentou 135 óbitos entre os 2.198 casos confirmados. A taxa de mortalidade da cólera em 2012 foi de 6 por cento, inferior à do ano anterior, que foi de 8 por cento.

1.5  CAUSAS

Segundo Horton & Courtejoie (1997), os principais factores que favorecem o surgimento da cólera são:

Ø  Nível socioeconómico (Higiene).
Ø  Condições da população (Concentração Humana).
Ø  Perca de Ácido – Gastico (Gastrectomia).

1.6  TRANSMISSÃO

A transmissão faz-se, primariamente, mediante a ingestão de água contaminada com as fezes ou os vómitos de pacientes ou pelas fezes de portadores; e, secundariamente, pela ingestão de alimentos que entraram em contacto com a água contaminada, por mãos contaminadas de doentes, de portadores e de manipuladores dos produtos, bem como pelas moscas, além do consumo de gelo fabricado com água contaminada. Peixes, crustáceos e bivalves, marinhos ou dulcícolas, provenientes de águas contaminadas, comidos crus ou mal cozidos, têm sido responsabilizados por epidemias e surtos isolados em vários países.

A transmissão da doença de pessoa para pessoa, por meio de contacto directo, foi responsabilizada por uma epidemia, em 1970, que afectou regiões africanas desérticas, em plena estação seca, quando praticamente não existiam reservatórios de água.

Factores como a concentração de pessoas e o contacto interpessoal directo que rege a vida africana (saudação feita tocando-se o peito, a boca e a fronte com a mão, bem como refeições comuns com o uso das mãos) estavam sempre presentes no contexto de transmissão.

Os autores afirmam que onde não há uma diluição da densidade microbiana, pela ausência de água, os surtos comportam-se deforma explosiva, afectando populações inteiras. Isso pode explicar alguns surtos importantes ocorridos no sertão da Região Nordeste, na alta estação da seca.

São factores essenciais para a disseminação da doença as condições deficientes de saneamento e, em particular, a falta de água potável em quantidade sufi ciente para atender às necessidades individuais e colectivas. Geralmente, a cólera é confinada aos grupos de baixo nível socioeconómico.

Mesmo em epidemias severas, a taxa de ataque da doença raramente excede a 2%.
As moscas podem transportar, mecanicamente, aos alimentos, os Vibrio cholerae das dejecções dos indivíduos infectados. Embora as moscas não desempenhem papel importante na propagação da doença, é necessário telar as janelas e as portas das enfermarias onde se encontrem doentes de cólera.

Às vezes, as epidemias de cólera evoluem lentamente durante várias semanas, apresentando um pequeno número de casos diários ou semanais. Geralmente, a fonte de infecção é uma grande colecção de água, um rio, um canal contaminado, um açude ou uma lagoa, que expõem a população a concentrações relativamente baixas de Vibrio cholerae. No decorrer do tempo, pode ser infectado um grande número de pessoas, embora os casos com manifestações clínicas só apareçam esporadicamente.

Nesses casos, uma investigação cuidadosa frequentemente revela numerosas infecções inaparentes e pequenos surtos explosivos em grupos familiares que utilizam uma fonte comum de abastecimento de água e de alimentos.

A contaminação maciça de mananciais e reservatórios com menor volume de água, bem como de lençóis freáticos, e a intermitência de distribuição de água na rede de abastecimento, possibilitando a passagem de águas contaminadas para dentro das tubulações, quase sempre são responsáveis por epidemias explosivas, que apresentam um grande número de casos com formas graves[6].

Ingestão de água ou alimentos contaminados por fezes ou vómitos de doente ou portador. A contaminação pessoa a pessoa e menos importante na cadeia epidemiológica. A variedade El Tor persiste na água por muito tempo, o que aumenta a probabilidade de manter sua transição e circulação. (Doenças Infecciosas e Parasitárias, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010. Página 117).

1.7  QUADRO CLÍNICO

Diarreia e vómito são as manifestações clínicas mais frequentes.

Na forma leve (em mais de 90% dos casos), o quadro costuma se iniciar de maneira insidiosa, com diarreia discreta, sem distinção das diarreias comuns, podendo também apresentar vómitos.

Tal fato tem importância epidemiológica por constituir a grande maioria dos casos, participando significativamente da manutenção da cadeia de transmissão. Esse quadro é comum em crianças, podendo ser acompanhado de febre, o que o torna ainda menos característico, razão pela qual são exigidos métodos laboratoriais para a sua confirmação.

Nos casos graves, mais típicos, embora menos frequentes (menos de 10% do total), o início é súbito, com diarreia aquosa, abundante e incoercível, com inúmeras dejecções diárias. As fezes podem se apresentar como água amarelo-esverdeada, sem pus, muco ou sangue. Em alguns casos, pode haver, de início, a presença de muco. Embora isto não seja comum em nosso meio, as fezes podem apresentar um aspecto típico de “água de arroz” (riziforme).

A diarreia e os vómitos dos casos graves determinam uma extraordinária perda de líquido, que pode ser de um a dois litros por hora. Tal quadro decreta rápida e intensa desidratação, que, se não tratada precoce e adequadamente, leva a graves complicações e até ao óbito.

A evolução desse processo pode se apresentar com muitas manifestações de desequilíbrio hidroeletrolítico e metabólico, constatadas por: sede, rápida perda de peso, perda do turgor da pele, principalmente das mãos (sintoma conhecido como “mãos de lavadeira”), prostração, olhos fundos com olhar parado e vago, voz sumidiça e cãibras. O pulso torna-se rápido e débil, surge hipotensão, e a ausculta cardíaca revela bulhas abafadas. Há cianose e esfriamento de extremidades, colapso periférico, anúria e coma.

As cãibras decorrem do distúrbio hidroeletrolítico no nível muscular e podem atingir a musculatura abdominal, a musculatura dos membros superiores e dos membros inferiores (panturrilhas, principalmente).

Existem relatos de algumas variações do quadro, como a “cólera tifóide”, que se caracteriza pela elevação da temperatura do corpo a 40ºC ou mais, acompanhada de complicações cuja evolução leva ao óbito.

Existem também registos da “cólera seca”, em que grande quantidade de líquido fica retida na luz intestinal e a desidratação ocorre sem que a perda de líquido seja evidente, o que pode trazer dificuldades iniciais para o diagnóstico.



1.8  DIAGNÓSTICO
1.8.1     Diagnóstico Diferencial

Com todas as outras doenças diarreicas agudas, principalmente nos casos ocorridos em crianças.

1.8.2     Diagnóstico Laboratorial

Consiste, habitualmente, no cultivo de fezes e/ou vómitos em meios apropriados, objectivando o isolamento e a identificação bioquímica do Vibrio cholerae O1 toxigênico, bem como a sua subsequente caracterização sorológica.

Recomenda-se a pesquisa laboratorial de todos os casos suspeitos apenas em áreas sem evidência de circulação do Vibrio cholerae O1 toxigênico. Em áreas de circulação comprovada, o diagnóstico laboratorial deverá ser feito em torno de 10% dos casos em adultos e 100% em crianças menores de 5 anos. Porém, o tamanho da amostra dependerá do volume dos casos e da capacidade operacional do laboratório.

Tais exames objectivam aferir a propriedade do diagnóstico clínico-epidemiológico, monitorizar a circulação do Vibrio cholerae patogénico na população e avaliar sua resistência aos antibióticos e às possíveis mudanças de sorotipo em casos autóctones ou importados. Outros patógenos devem ser pesquisados, principalmente nos casos negativos para Vibrio cholerae.

Horton e Courtejoie (1997) recomendam o exame de Ht (Hematocrito) para determinar o grau de desidratação.

1.8.3  Diagnóstico Clínico-Epidemiológico

É o critério utilizado na avaliação de um caso suspeito, no qual são correlacionadas variáveis clínicas e epidemiológicas capazes de definir o diagnóstico sem investigação laboratorial.
Deve ser utilizado para pacientes maiores de 5 anos com diarreia aguda, em áreas onde há evidência de circulação do Vibrio cholerae O1 toxigênico, ou seja, onde este último foi isolado por meio de cinco ou mais amostras humanas e/ou ambientais.

O uso do critério clínico-epidemiológico possibilita maior agilidade ao processo de diagnóstico e aumenta a sensibilidade do sistema de vigilância epidemiológica na detecção de casos.

De igual forma, diminui os custos operacionais do laboratório, liberando-o para o desempenho de outras actividades, como, por exemplo, os testes de sensibilidade e resistência aos antibióticos, bem como a pesquisa de Vibrio cholerae O1 toxigênico em amostras ambientais e de alimentos, além da identificação de outros microrganismos causadores de diarreia.

Para mais detalhes quanto ao uso desse critério, veja o tópico “Caso confirmado pelo critério clínico-epidemiológico”.

1.8.4     LABORATÓRIO

Na concepção da vigilância epidemiológica, o laboratório desempenha um papel de relevância não só no levantamento das infecções provocadas pelas enterobactérias, mas, principalmente, no diagnóstico bacteriológico das primeiras evidências de circulação do V. cholerae (amostras clínicas, ambientais e de alimentos) e na monitorização das diarreias e do ambiente, após o restabelecimento do silêncio epidemiológico.

Por tal razão, é fundamental o estabelecimento de uma rede de laboratórios, com pessoal habilitado na execução do diagnóstico etiológico das infecções intestinais e com capacidade sufi ciente para isolar e identificar o agente causal da cólera.

1.8.4.1        Colecta de Amostras

Colecta de material clínico:

O êxito no isolamento do V. cholerae depende de uma colecta adequada das fezes, observando-se os seguintes aspectos:

Ø  As fezes[7] devem ser colhidas antes da administração de antibióticos ao paciente;
Ø  Recolher preferencialmente de 3 a 5 gramas de fezes, diarreicas ou não, em recipiente de boca larga, limpos e/ou esterilizados (não utilizar substâncias químicas);
Ø  Evitar recolher amostras fecais contidas nas roupas do paciente, na superfície de camas ou no chão;
Ø  Nos casos em que a colecta se realizar em locais distantes do laboratório, utilizar “swab” retal ou recolher parte das fezes, contidas no recipiente, com auxílio de um “swab” fecal; em ambos os casos, os “swabs” devem ser introduzidos no meio de transporte CaryBlair ou em 10 a 20ml de água peptonada alcalina (pH 8,4–8,6);
Ø  Recomenda-se a colecta de 2 a 3 amostras por paciente, desde que haja disponibilidade suficiente de material para colecta e capacidade de processamento laboratorial de todas as amostras encaminhadas.

Transporte de Amostras:

a)    Qualquer amostra enviada ao laboratório deve ser previamente rotulada, identificada e acompanhada da “Ficha de Encaminhamento de Amostras Ambientais e de Alimentos” ou da cópia da “Ficha de Investigação Epidemiológica” (amostras clínicas) devidamente preenchidas.

b)    As amostras “in natura”, acondicionadas em frascos de boca larga, devem ser processadas no laboratório até duas horas após a colecta, se mantidas à temperatura ambiente, ou até cinco horas, se sob refrigeração (de 4º a 8ºC).
c)    O meio de transporte Cary-Blair conserva, até quatro semanas, numerosos tipos de bactérias, inclusive vibriões. No entanto, como o “swab” (retal ou fecal) contém outros microrganismos da flora normal, recomenda-se processá-lo de 24 a 72 horas após a colecta (a 30ºC) ou até sete dias, se mantido sob refrigeração (de 4º a 8ºC).

d)    As amostras acondicionadas em tubos de água peptonada alcalina (APA) devem ser processadas, no laboratório, até 12 horas após a colecta, se mantidas à temperatura ambiente.

e)    As amostras colectadas por “swab” devem ser transportadas em Cary-Blair se não forem semeadas de imediato.

f)     Com relação à colecta de material, é importante que se oriente que esta deve ser feita pelos profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento ao paciente. O mesmo se aplica para as amostras ambientais, que deverão ser colectadas pela vigilância ambiental e/ou sanitária. O laboratório só fará a colecta em casos excepcionais.

1.9  TRATAMENTO

O diagnóstico e o tratamento precoce dos casos de cólera são factores fundamentais para a recuperação do paciente, alem de diminuírem a contaminação do meio ambiente e propiciarem a identificação e a vigilância epidemiológica dos comunicantes.

A terapêutica correcta se fundamenta na reposição rápida e completa da água e dos electrólitos perdidos pelas fezes e pelos vómitos. Os líquidos serão administrados por via oral ou parenteral, segundo o estado do paciente. O inicio da terapêutica independente dos resultados dos exames laboratoriais.

O paciente suspeito ou com cólera confirmada devera obrigatoriamente iniciar seu tratamento no local onde receber o primeiro atendimento.

1.9.1     Avaliação Clínica do Paciente

A observação dos sinais e dos sintomas e fundamental para que se possa classificar o paciente quanto ao seu estado de hidratação no decorrer da diarreia de qualquer etiologia, inclusive a causada pela cólera, com a finalidade de identificar o grau de desidratação e decidir sobre o plano de reposição.

1.9.2     Critérios de Internação

Deve-se considerar que uma parcela dos pacientes do sector de triagem será transferida para o sector de internação.

A princípio devem ser internados:

Ø  Os pacientes com desidratação grave, com ou sem complicações;
Ø  Os pacientes com patologias sistémicas associadas (diabetes, hipertensão arterial; Sistémica, cardiopatias ou outras patologias afins);
Ø  As crianças com desnutrição grave;
Ø  Os pacientes idosos;
Ø  As gestantes;
Ø  Os pacientes desacompanhados que sejam portadores de doenças crónicas;
Ø  Os pacientes residentes em locais distantes que não tenham tolerância oral plena.

O livro Doenças Infecciosas e Parasitárias (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010) sugere os seguintes procedimentos para o tratamento: Formas leves e moderadas, com soro de reidratação oral (SRO). Formas graves, com hidratação venosa e antibiótico: para menores de 8 anos, recomenda-se Sulfametoxazol (50mg/kg/dia) +Trimetoprim (10mg/kg/dia), via oral, de 12/12 horas, por 3 dias; para maiores de 8 anos, Tetraciclina, 500mg, via oral, de 6/6 horas, por 3dias; para gestantes e nutrizes, Ampicilina, 500mg, VO, de 6/6 horas, por 3 dias.



1.9.3     FLUÍDO TERAPIA

A avaliação do estado de hidratação indica a conduta terapêutica, como se segue:

1.9.3.1        Plano a – Pacientes Sem Sinais de Desidratação

O tratamento e domiciliar, com a utilização:

·         Da solução de sais de hidratação oral (SRO); e
·         Dos líquidos disponíveis no domicílio (chás, cozimento de farinha de arroz, agua de coco, soro caseiro, etc.).

Tais líquidos devem ser usados após cada episódio de evacuação ou vomito, de acordo comas indicações a seguir:

·         Menores de 2 anos: 50 a 100ml;
·         Maiores de 2 anos: 100 a 200ml;
·         Adultos: a quantidade que aceitarem.

E importante ressaltar que os refrigerantes não devem ser utilizados, pois, alem de ineficazes como hidratantes, podem agravar a diarreia.

A alimentação habitual deve ser mantida e estimulada. Os pacientes ou seus responsáveis deverão ser orientados para o reconhecimento dos sinais de desidratação e no sentido de procurar imediatamente o serviço de saúde mais próximo, na eventual ocorrência dos sinais ou se a diarreia se agravar, apresentar sangue nas fezes (disenteria) ou febre alta.

1.9.3.2        Plano B – Pacientes Com Desidratação

Todos os pacientes desidratados, mas com capacidade de ingerir líquido, devem ser tratados com solução de sais de reidratação oral (SRO).

Não é necessário determinar o volume exacto a ser administrado, mas recomenda-se que seja contínuo, conforme a sede do paciente, até a completa recuperação do estado de hidratação.

Deve-se observar se a ingestão é superior às perdas. Para crianças, a orientação é de 100ml/kg, administrados num período não superior a 4 horas.

Se o paciente vomitar, pode-se reduzir o volume e aumentar a frequência das tomadas. A solução de SRO pode ser administrada através de sonda naso-gástrica, quando necessário.

Os vómitos geralmente cessam após 2 a 3 horas do início da reidratação. Os lactentes amamentados devem continuar recebendo o leite materno. Para os demais pacientes, administrar apenas SRO até se completar a reidratação.

Os sinais clínicos de desidratação desaparecem paulatinamente, durante o período de reidratação. Todavia, devido à possibilidade de ocorrer rapidamente maior perda de volume, os pacientes devem ser avaliados com frequência, para se identificar, oportunamente, necessidades eventuais de volumes adicionais de solução de SRO.

Uns poucos pacientes que apresentem perdas fecais intensas podem ter dificuldades para beber um volume de SRO necessário para manter o estado de hidratação.

No caso de apresentarem fadiga intensa, vómitos frequentes ou distensão abdominal, deve-se suspender a reidratação oral e iniciar a hidratação endovenosa.

1.9.3.3        Plano C – Pacientes com Desidratação Grave ou Choque

Se o paciente apresentar sinais e sintomas de desidratação grave, com ou sem choque (palidez acentuada, pulso radial filiforme ou ausente, hipotensão arterial, depressão do sensório), a sua reidratação deve ser iniciada imediatamente por via endovenosa, conforme o esquema:


Adultos:

a) Via venosa periférica – 2 veias de bom calibre: administrar volumes iguais de NaCl a 0,9% e ringer lactato em, aproximadamente, 10% do peso do paciente, em cerca de duas horas. Se estiver faltando uma das soluções, usar apenas uma ou a solução polieletrolítica.

b) Reavaliar o paciente; se persistirem os sinais de choque, repetir a prescrição; caso contrário, iniciar balanço hídrico com as mesmas soluções.

c) Administrar concomitantemente a solução de SRO, em doses pequenas e frequentes, tão logo o paciente a aceite. Isso acelera a recuperação do paciente e reduz drasticamente o risco de complicações pelo manejo inadequado.

d) Suspender a hidratação endovenosa quando o paciente estiver hidratado, com boa tolerância ao SRO e sem vómitos.

Crianças:

Até que se instale a reidratação endovenosa, deve-se administrar a solução de SRO através de sonda naso-gástrica ou conta-gotas.

a)    A reidratação endovenosa deverá seguir o seguinte esquema:

Tabela 01:Tratamento para pacientes de 5 anos em fase rápida (de expansão)
Solução 1:1
Volume total[8]
Tempo de administração
Metade de soro glicosado a 5% e metade de soro fisiológico.

100ml/kg.

2 horas.
Fonte: Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera, 2010.

b)    Administrar a solução de SRO tão logo a criança a aceite.
c)    Suspender a hidratação endovenosa quando o paciente estiver hidratado, sem vómitos, num período de 2 horas, e com ingestão sufi ciente para superar as perdas.

Com o emprego desses esquemas terapêuticos, a expectativa é a de que a hidratação endovenosa possa ser dispensada a partir de 3 a 4 horas de sua administração ininterrupta. Um bom indicador de que o paciente saiu do estado de desidratação grave, ou choque, é o restabelecimento do pulso radial em termos de frequência e amplitude (pulso cheio e regular).

O paciente que tenha passado à hidratação oral deve ficar sob constante avaliação clínica, considerando-se, inclusive, a possibilidade de seu retorno à reidratação endovenosa, situação que somente deve ocorrer em reduzido número de casos.

A hospitalização prolongada é desnecessária e deve ser evitada, pois é sabido que os pacientes já em reidratação oral podem receber alta desde que a ingestão oral seja sufi ciente para cobrir as perdas. No momento da alta, os pacientes devem ser providos com dois ou mais envelopes de SRO e devem ser devidamente instruídos quanto ao seu preparo e uso, quanto à alimentação adequada e à ingestão de líquidos[9].
Soluções venosas que podem ser utilizadas em caso de cólera:

Solução polieletrolítica (composição em mMol/l)
Sódio  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 90
Potássio.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 20
Cloro  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 80
Acetato  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 30
Dextrose  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  111
Osmolaridade  .  .  .  .  .  .  .  311mOsm/kg H2O

Solução a ser preparada localmente
Solução de glicose[10] a 5%.  .  .  .  .  .  .  .1.000ml
Cloreto de sódio a 20%.  .  .  .  .  .  .  .  .  15ml
Cloreto de potássio a 10%  .  .  .  .  .  .  .  15ml
Bicarbonato de sódio a 8,4  .  .  .  .  .  .  .  20ml

1.9.4     ANTIBIOTICOTERAPIA

Nos casos graves de cólera, a antibioticoterapia contribui para reduzir o volume e a duração da diarreia, quando instituída no decurso das primeiras 24 horas, a partir do início dos sintomas. Sua administração deve ser por via oral quando cessam os vómitos, em geral após um período de 3 a 4 horas do início da reidratação.

A utilização de preparados injectáveis, mais onerosos, não apresenta nenhuma vantagem (lembrar que o V. cholerae não invade a mucosa, razão pela qual o uso de antibiótico por via parenteral é pouco efectivo).

Nos pacientes maiores de 8 anos, o antibiótico de escolha é a tetraciclina, na dose de 500mg de 6 em 6 horas durante 3 dias. Nos pacientes com menos de 40kg, a dose deve ser de 50mg/ kg/dia, dividida em 4 tomadas.

Podem ser utilizadas também a doxiciclina (300mg em dose única) ou a furazolidona (100mg de 6 em 6 horas por 3 dias) ou, ainda, a eritromicina (500mg de 6 em 6 horas – 3 doses). Para gestantes e nutrizes é recomendado o uso de ampicilina, na dose de 500mg de 6 em 6 horas por 3 dias.

Para os menores de 8 anos tem-se recomendado o uso de sulfametoxazol (50mg/kg/dia), aliado a trimetoprim (10mg/kg/dia), de 12 em 12 horas por 3 dias.

Nos casos de choque, a administração deve se iniciar logo que o paciente saia esse estado e recupere a capacidade de ingerir com segurança.

A antibioticoterapia é especialmente benéfica nos casos de desidratação grave. O uso de antibióticos no tratamento dos outros casos, que são a grande maioria, apesar de reduzir a excreção fecal, não contribui sobremaneira para evitar a evolução da moléstia e pode acelerar o aparecimento de cepas resistentes de V. cholerae, não trazendo nenhum benefício aos pacientes.

Deve-se ressaltar que os estudos feitos quanto à resistência aos antibióticos mantêm a tetraciclina como primeira opção terapêutica, inclusive nos casos devidos ao V. cholerae O139, que tem se mostrado resistente à furazolidona e ao sulfametoxazol aliado ao trimetoprim. Deve-se suspeitar de resistência ao antibiótico quando a diarreia persistir por mais de 48 horas após o início de sua administração.

1.9.5     ALIMENTAÇÃO

Paralelamente à administração da solução de SRO, deve-se permitir ao paciente a ingestão de água. A alimentação pode ser reiniciada assim que esteja concluída a reidratação do paciente e tenham cessado os vómitos, o que geralmente ocorre após 3 a 4 horas de tratamento. Para os lactentes deverá ser incentivada a manutenção do aleitamento materno.

As crianças com aleitamento misto ou artificial devem continuar a receber a dieta habitual. Os alimentos, inclusive o leite de vaca, não devem ser diluídos para não reduzir o aporte calórico. É importante lembrar que os líquidos de hidratação oral, inclusive a solução de SRO, não substituem a alimentação.

1.9.6     CRITÉRIOS DE ALTA

Somente devem receber alta os pacientes que estejam hidratados, que apresentem tolerância oral plena e função renal normal, avaliada por franca diurese.


1.9.7     COMPLICAÇÕES

As complicações da cólera decorrem fundamentalmente da depleção hidrossalina, imposta pela diarreia e pelos vómitos, e ocorrem mais frequentemente nos indivíduos idosos, diabéticos ou com patologia cardíaca prévia. A desidratação não corrigida levará a uma deterioração progressiva da circulação, da função renal e do balanço metabólico, produzindo dano irreversível a todos os sistemas do organismo
e, consequentemente, acarretando:

Ø  Choque hipovolêmico;
Ø  Necrose tubular renal;
Ø  Paralisia do íleo/atonia intestinal;
Ø  Hipocalemia, levando a arritmias cardíacas;
Ø  Hipoglicemia, com convulsões e coma em crianças;
Ø  Aborto e parto prematuro em casos com choque hipovolêmico.

1.9.7.1        Complicação Devida Ao Manejo Inadequado

O uso de soro endovenoso (EV) em excesso pode levar o paciente a apresentar um quadro de edema pulmonar, principalmente quando não se corrige a acidose metabólica. Tal caso é mais frequente quando se utiliza soro EV exclusivamente, sem associá-lo à reidratação por via oral com SRO.

Seguindo-se as orientações correctamente, o risco de edema pulmonar é praticamente ausente. A solução de SRO jamais será causa de edema pulmonar.

Os pacientes idosos, hipertensos ou cardiopatas devem ser reidratados com maior cautela, sob rigorosa vigilância, com realização de ausculta pulmonar, pesquisa de estertores em bases, verificação da pressão arterial e observação da frequência respiratória.

Por outro lado, a insuficiência renal pode surgir como consequência do uso insuficiente de solução endovenosa ou pelo choque hipovolêmico prolongado ou de repetição, principalmente em pacientes maiores de 60 anos. Deve ser evitada com a correcção rápida da desidratação grave e da manutenção do estado de hidratação, de acordo com as orientações apresentadas neste capítulo.

1.10             CUIDADOS DE ENFERMAGEM

Uma medida altamente eficaz para reduzir a morbimortalidade causada pelas diarreias, e particularmente pela cólera, é a instituição do tratamento precoce e adequado aos pacientes sintomáticos, assim como o uso de medidas de biossegurança, para se evitar que os serviços de saúde sejam transformados em fontes de transmissão.

Para tal fim, os serviços prestados pelas unidades de saúde, independentemente do seu grau de complexidade e da natureza da entidade, deverão estar organizados de modo a garantir que o atendimento dos casos seja feito da melhor forma possível, optimizando os recursos disponíveis.

Essa organização deve ser iniciada pela adequação das unidades de saúde de acordo com a demanda e a evolução das diarreias no seu local de abrangência; por tal razão, não será necessária, obrigatoriamente, a construção de uma área física específica para tal finalidade.

O envolvimento de toda a equipe multidisciplinar é imprescindível e favorecerá a adopção das medidas apropriadas, de acordo com o caso, no menor tempo possível.

Todo o pessoal médico e de enfermagem deverá receber treinamento (ou estar treinado) nas técnicas realmente efectivas utilizadas para o manejo de pacientes com diarreia aguda. Os procedimentos relativos ao manejo dos casos de cólera são semelhantes aos destinados aos casos de diarreia por outras causas. Porém, os surtos de cólera geram maior demanda dos serviços de atendimento, pelo aumento dos casos de diarreia nas áreas onde ocorrem, com maior frequência de desidratação grave.

As unidades de atendimento deverão compor um sistema regionalizado e hierarquizado, com fluxos preestabelecidos de referência e contrarreferência, levando em consideração a facilidade de acesso dos pacientes, os meios de remoção (quando necessária) e a cobertura da população de suas áreas de abrangência.

A OMS recomenda que se utilize, para fins de cálculo da cobertura e dos insumos necessários para o tratamento dos pacientes de cólera, uma taxa de ataque esperada de 0,2%. Isso significa que, para uma população de 100.000 habitantes, existe a previsão do surgimento de 200 pacientes durante um surto de cólera.

Destes 200, estima-se que 40 apresentarão desidratação grave, cujo tratamento exigirá reidratação endovenosa e por via oral (SRO), além de antibióticos, e 160 pacientes apresentarão algum grau de desidratação (ou mesmo nenhum), cujo tratamento exigirá apenas ingestão de SRO.

A taxa de ataque durante um surto pode ultrapassar 2% em algumas localidades. Porém, a previsão de 0,2% é sufi ciente para garantir a efectividade das acções durante as primeiras semanas, tempo sufi ciente para que as necessidades possam ser redimensionadas, de acordo com a demanda observada.

Para responder rapidamente a um surto e prevenir os óbitos pela cólera, os serviços de saúde devem ter acesso a suprimentos essenciais, particularmente sais de reidratação oral, soros endovenosos e antibióticos apropriados.

Durante um surto de cólera, esses suprimentos serão requeridos em quantidades maiores do que a normal. Logo, estoques adicionais devem ser colocados em pontos apropriados do sistema de distribuição de medicamentos. Isso pode incluir pequenos estoques em centros de saúde de hospitais, maiores estoques em níveis regionais, distritais ou locais, e estoques para situações emergenciais em centros de distribuição.

Os estoques não devem ser reservados especificamente para a cólera, mas o sistema de distribuição deverá absorvê-los de acordo com a sua demanda, com a finalidade de manter sua rotatividade e evitar o seu vencimento por falta de uso.
Será necessário, portanto, designar pessoal responsável para coordenar a aquisição e a distribuição dos medicamentos e dos insumos de urgência, com o objectivo de atender à demanda, no âmbito da padronização, assegurando, assim, a assistência adequada à população.

Quando surgir um surto provável ou confirmado de cólera em localidades cujos serviços de saúde sejam deficientes, devem ser rapidamente destacadas, para as áreas de risco, equipes móveis compostas por profissionais capacitados para:

Ø  Implantar a(s) unidade(s) de tratamento de cólera (UTC);
Ø  Ministrar treinamento em serviço no manejo de pacientes e no cumprimento às normas de biossegurança para os profissionais locais;
Ø  Estabelecer os fluxos de informação e realizar estudos para determinar os mecanismos de transmissão;
Ø  Colectar amostras clínicas, ambientais e de alimentos para a pesquisa e a identificação do agente etiológico;
Ø  Realizar actividades de comunicação e de educação em saúde, com a finalidade de envolver a população nas actividades de prevenção e controle, bem como para evitar o pânico.

1.10.1  Orientação Após A Alta

A avaliação do estado de hidratação do paciente determinará a possibilidade de alta, que será dada sempre que o paciente estiver com hidratação restabelecida. A rotina de alta da unidade de saúde deverá ser obedecida, sendo que é recomendada a observação aos seguintes pontos:

1)    Avaliação médica com assinatura da alta no prontuário;
2)    Devolução dos pertences (vestuários desinfectados, etc.) dos pacientes;
3)    Encaminhamento do paciente à sala de orientação pós-alta;
4)    Orientação do paciente quanto à doença, à higiene pessoal, à alimentação e ao tratamento da água;
5)    Ênfase na importância do SRO e do soro caseiro;
6)    Esclarecimento do paciente sobre a prevenção e o controle das doenças diarreicas;
7)    Fornecimento de cartilhas ou folhetos sobre a prevenção da cólera;
8)    Orientação do paciente sobre a administração do medicamento, no caso de alta com prescrição de antibióticos;
9)    Realização das providências necessárias ao deslocamento do paciente até o domicílio;
10) Fornecimento de informações sobre os cuidados com fezes e vómitos em domicílio e orientações sobre como fazer a desinfecção química com solução clorada, deixando os dejectos em contacto com a solução por uma hora e desprezando-os no sanitário;
11) Fornecer orientações ao paciente sobre como enterrar os dejectos, caso o domicílio não tenha instalações.

1.10.2  Cuidados Com o Corpo Após a Morte

Algumas actividades relacionadas com os ritos funerários podem contribuir para a propagação da cólera. Os velórios reúnem pessoas, muitas vezes de regiões distantes, algumas inclusive provenientes de áreas poupadas pela doença, que poderão levar o V. cholerae quando do seu retorno.

É de suma importância alertar a população no sentido de limitar ao máximo as cerimónias fúnebres, o banho ritual dos defuntos e as refeições servidas costumeiramente àqueles que comparecem aos velórios. Para reduzir a propagação da infecção, faz-se necessário que os enterros sejam feitos de forma rápida e na mesma localidade onde aconteceu o óbito.

As pessoas que se ocuparam do doente e da limpeza do local, antes do óbito, e aquelas que fazem o preparo do corpo após o falecimento correm os riscos de exposição a doses maciças de vibriões. Muitas vezes, são essas mesmas pessoas que prepararão os alimentos que serão servidos nos velórios. O abandono desta prática reduzirá consideravelmente o risco de transmissão da infecção.

Independentemente do local onde ocorrer o óbito (Unidade diarreica – UD, Unidade de Tratamento da Cólera – UTC ou no domicílio da vítima), o preparo do corpo após a morte deverá seguir a técnica de precauções entéricas, tendo como base o seguinte roteiro:

a)    Constatar o óbito e comunicar o fato aos familiares, caso não tenham ainda seu conhecimento;
b)    Fazer assepsia do corpo com solução clorada e tamponar os orifícios naturais do corpo com algodão embebido em solução clorada;
c)    Fixar o cartão de identificação directamente no corpo (em dois locais);
d)    Envolver o corpo com lençol de tecido, identificando-o com outro cartão;
e)    Encaminhar o corpo até o necrotério ou o serviço de anatomia patológica, com o boletim de óbito devidamente preenchido;
f)     Orientar familiares e profissionais de forma que o caixão seja mantido fechado até o sepultamento, que deverá ser feito o mais rápido possível.

1.11             PREVENÇÃO

Quando o V. cholerae é introduzido em áreas com precárias condições sanitárias, o risco de circulação é bastante elevado e, principalmente, quando não existe um bom sistema de abastecimento de água potável para as comunidades, o principal instrumento para o controle da Cólera, é prover as populações sob risco, de adequada infra-estrutura de saneamento (água, esgotamento sanitário e colecta e disposição de lixo), o que exige investimentos sociais do poder público.

A rede assistencial deve estar estruturada e capacitada para a detecção precoce e o manejo adequado dos casos.

Deve-se ter cuidados com os vómitos e as fezes dos pacientes no domicílio. É importante informar sobre a necessidade da lavagem rigorosa das mãos e procedimentos básicos de higiene. Isolamento entérico nos casos hospitalizados, com desinfecção concorrente de fezes, vómitos, vestuário e roupa de cama dos pacientes. A quimioprofilaxia de contactos não é indicada por não ser eficaz para conter a propagação dos casos.

Além disso, o uso de antibiótico altera a chora intestinal, modificando a susceptibilidade à infecção, podendo provocar o aparecimento de cepas resistentes. A vacinação apresenta baixa eficácia (50%), curta duração de imunidade (3 a 6 meses) e não evita a infecção assintomática. Para vigiar e detectar precocemente a circulação do agente preconiza-se: fortalecimento da monitorização das doenças diarréicas agudas, nos municípios do país, e a monitorização ambiental para pesquisa de V. cholerae, no ambiente.

É importante ressaltar que no caso do V. cholerae El Tor, a relação entre doentes e assintomáticos é muito alta, podendo haver de 30 a 100 assintomáticos para cada indivíduo doente; assim, as medidas de prevenção e controle devem ser direccionadas a toda a comunidade, para garantir o impacto desejado.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENENSON, A. (Ed.). Controle das doenças transmissíveis no homem. 13. ed. Washington: OMS, 1993. 420 p.

COSTA, G. A.; HOFER, E. Isolamento e identificação de enterobactérias. Rio de Janeiro: Instituto Osvaldo Cruz, 1972. (Série de monografias).

Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 8. ed. rev. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Manual de organização e procedimentos hospitalares. São Paulo: PROAHSA, FGV/EAESP/HC/FMUSP, 1987.

Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 2. ed. rev. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

MORBIDITY AND MORTALITY WEEKLY REPORT. Imported cholera associated with a newly described toxigenic Vibrio cholerae O139 Strain: California, 1993. New York, v. 42, n. 26, p. 501-503, jul. 1993.

ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE. Área de Desenvolvimento de Programas de Saúde. Programa de Saúde Pública Veterinária. Riscos de transmissão de cólera por alimentos. Washington, 1991.

RESTREPO, M. et al. Cólera. Bogotá: Ministerio de Salud, Instituto Nacional de Salud, 1991. 47 p. (Serie de notas e informes técnicos, 19).

VIEIRA, J. M. Cólera. In: Veronesi, R. Doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan, 1991, p. 417-426.











[1] TAVARES, WALTER. Rotinas de Diagnóstico e Tratamento das Doenças Infecciosas e Parasitárias, 2ª Ed. Editara Atheneu, 2009.
[2] G. HORTO Net J. COURTEJOIE. De la maladie à la santé, St. Paul, 1997.
[3] A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão (CID-10) corresponde a um esforço internacional para listagem dos agravos à saúde, relacionando seus respectivos códigos. A cada estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código, que contém até 6 caracteres. Tais categorias podem incluir um conjunto de doenças semelhantes. Está dividida em 22 capítulos. O Capítulo I relaciona Algumas doenças infecciosas e parasitárias
[4]MINISTÉRIO DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera. 2. ed. rev. – Brasília, 2010.
[5] MINISTÉRIO DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Doenças infecciosas e parasitárias : guia de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,8. ed. rev. – Brasília, 2010.
[6]MINISTÉRIO DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera. 2. ed. rev. – Brasília, 2010. pág. 20-21
[7]Recomenda-se a técnica do papel de filtro, de acordo com Dold e Ketterer (1944) e Barua (1974): – tiras de papel de filtro, tipo xarope ou de mata-borrão, com dimensões de 2,5cm de largura por 6cm de comprimento, constituem um recurso muito útil para a remessa de espécimes fecais ao laboratório; as fezes diarreicas, ou aquelas emulsionadas em água, devem ser espalhadas em 2/3 de uma das superfícies do papel, com auxílio de um fragmento de madeira ou de qualquer outro material semelhante disponível no momento; – realizada essa etapa, as tiras de papel de filtro devem ser acondicionadas em invólucros plásticos, perfeitamente vedados, para evitar a dissecação do material fecal, a fim de que seja mantida a viabilidade do vibrião colérico.
[8]Na fase rápida, não se recomenda a utilização de solução de ringer lactato ou de outras que também possam induzir hipernatremia, principalmente em crianças menores de 2 anos. Não utilizar solução glicofisiológica disponível no mercado, pois as concentrações de cloreto de sódio e de glicose são diferentes da solução 1:1 de SF e de SG a 5%.
[9]A experiência tem mostrado que alguns pacientes que não apresentavam sinais de desidratação no momento da primeira avaliação, mas com história de diarreia aquosa e abundante, tendo sido liberados para seus domicílios com SRO, voltavam ao serviço após 3 a 4 horas, apresentando desidratação grave. Tais pacientes devem ser avaliados cuidadosamente, tanto por meio da história clínica quanto pelo exame físico, e devem ingerir a solução de SRO na unidade de saúde por um período de 4 horas antes da sua liberação.
[10]A utilização isolada de solução de glicose é ineficaz e não deve ser prescrita, uma vez que provoca diureses osmóticas (aumentando ainda mais as perdas) e até choque com hiponatremia e hiperglicemia.

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