CAPÍTULO I
1.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 DEFINIÇÃO
Tavares[1] define a
cólera como uma infecção do intestino delgado por algumas estirpes das
bactérias Vibrio cholerae. (TAVARES,
2009).
Ainda Horton
apud Courtejoie[2]
(1997) define a cólera como uma doença diarreica epidémica provocado por uma
bactéria Gram Negativa.
1.2 CONCEITO
A cólera (CID
A00.9)[3],
conforme já vimos na definição, é uma doença infecciosa intestinal aguda
causada pela enterotoxina do Vibrio
cholerae. É de transmissão predominantemente hídrica.
As
manifestações clínicas ocorrem de formas variadas, desde infecções inaparentes
ou assintomáticas até casos graves com diarreia profusa, podendo assinalar desidratação
rápida, acidose e colapso circulatório, devido a grandes perdas de água e electrólitos
corporais em poucas horas, caso tais perdas não sejam restabelecidas de forma
imediata. Os quadros leves e as infecções assintomáticas são mais frequentes do
que as formas graves. (Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera,
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).
1.3 AGENTE ETIOLÓGICO
Segundo o Manual
Integrado de Prevenção e Controle da Cólera[4] (2010), O
agente etiológico da cólera é o Vibrio cholerae O1 toxigênico ou O139,
bacilo Gram-negativo, com flagelo polar, aeróbio ou anaeróbio facultativo,
isolado por Koch no Egipto e na Índia, em 1884, inicialmente denominado de Kommabazilus
(bacilo em forma de vírgula).
Existem dois biótipos
de Vibrio cholerae O1: o clássico, descrito por Koch, e o El Tor, isolado
por Gotschlich em 1906, de peregrinos procedentes de Meca, examinados na
estação de quarentena de El Tor, no Egipto.
Ambos os biótipos
são indistinguíveis bioquímicas e antigenicamente; de igual forma, enquadram-se
na espécie Vibrio cholerae e integram o sorogrupoO1, que apresenta três
sorotipos, denominados Ogawa, Inaba e Hikojima. O biótipo El Torsomente foi
associado a episódios graves da doença e aceito como agente etiológico em
1961,exatamente no início da 7ª pandemia.
O biótipo El
Tor é menos patogénico que o biótipo clássico e causa, com mais frequência, infecções
assintomáticas e leves. A relação entre o número de doentes e o de portadores
com o biótipo clássico é de 1:2 a 1:4; com o biótipo El Tor, a relação é de
1:20 a 1:100.
Outro factor
que favorece a disseminação do biótipo El Tor é a maior resistência deste às
condições externas, que o permite sobreviver por mais tempo do que o biótipo
clássico no meio ambiente. Essas características do El Tor dificultam significativamente
as acções de vigilância epidemiológica e, na prática, impedem o bloqueio efectivo
dos surtos de cólera, principalmente quando ocorrem em áreas com precárias
condições de saneamento.
Em Outubro de
1992, ocorreu uma epidemia de diarreia coleriforme na Baía de Bengal, Índia. As
cepas de Vibrio cholerae isoladas produziam toxina colérica, mas não
pertenciam ao sorotipo O1. No início de 1993, foram isoladas cepas semelhantes
de Vibrio cholerae nãoO1 em surtos epidémicos que se iniciaram em
Calcutá, Índia, com mais de 13 mil casos, e em Dhaka, Bangladesh, com mais de
10 mil casos.
Não se
conseguiu aglutinação com nenhum dos até então 138 antissoros conhecidos;
considerou-se, então, que tais cepas representavam um novo sorogrupo, o Vibrio
cholerae O139, também conhecido como “bengal”. Foram detectados casos em
Bangladesh, China, Estados Unidos, Índia, Malásia, Nepal, Paquistão, Reino
Unido e Tailândia.
Outros
sorogrupos não O1 do Vibrio cholerae já foram identificados em todo o mundo,
sabendo-se que podem ocasionar patologias extra-intestinais e diarreias com
desidratação severa semelhante à cólera. No entanto, até o presente, tais
sorogrupos têm sido associados a casos esporádicos ou a surtos muito limitados
e raros de diarreia. (Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera,
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).
E de acordo
com o Departamento de Vigilância
Epidemiológica[5],
declara Vibrio cholerae O1, biótipo clássico ou El Tor(sorotipos Inaba,
Ogawa ou Hikogima), toxigenico, e, também, oO139. Bacilo Gram-negativo, com
flagelo polar, aeróbio ou anaeróbio facultativo, produtor de endotoxina.
1.4 EPIDEMIOLOGIA
A denominação
”cólera” já era usada nos primeiros séculos da Era Cristã, tendo sido descrita desde
os tempos dos escritores sânscritos e de Hipócrates (400 a.C.). A história da
doença sempre esteve associada à Índia, onde, segundo alguns autores, a sua
transmissão é milenar.
O primeiro registo
de um surto foi descrito por Gaspar Corrêa em 1503, no livro “Lendas da
índia”, referindo-se ao acometimento, no exército do sultão de Calcutá, de
uma doença que “provocava vómitos, sede de água, estômago ressecado, cãibras
musculares, olhos turvos” e causava muito sofrimento e a morte em poucas
horas.
A cólera
(palavra feminina que significa “fluxo de bile”) era conhecida dos
navegadores árabes e europeus nos séculos XV e XVI, em suas viagens pelos
grandes deltas da Ásia Meridional. Era considerada uma “febre” própria de
lugares exóticos, quando no século XIX começou a “viajar”.
A par de
relatos de surtos localizados de cólera em tropas de colonizadores europeus que
penetravam na região de Bengala, Índia, como o que se deu entre a frota
britânica em1782, o primeiro registo de difusão da doença para outros
continentes ocorreu em 1817. Desde então, a doença evoluiu e produziu, a partir
da região do Golfo de Bengala, sete pandemias.
A primeira
pandemia, ocorrida no período de 1817 a 1823, estendeu-se do Vale do Rio Ganges
a outras regiões da Ásia e ao norte da África.
Os russos,
após a invasão da Pérsia, levaram a cólera para a Europa, pela primeira vez
atingida em larga escala. Deu-se início à segunda pandemia, que ocorreu no
período de 1826 a1837, quando atingiu também a América a partir do México, difundindo-se
ainda pelos países da América Central, América do Sul e pelos Estados Unidos.
A terceira
pandemia, cujo período de transmissão vai de 1846 a 1862, determinou também uma
produção intensa de casos, com o acometimento de uma série de países situados
na Ásia, na África, nas Américas e na Europa. Nesta última, restringiu-se a
três países: França, Itália e Espanha. A Inglaterra não foi afectada devido às
severas medidas adoptadas a partir das descobertas de John Snow, com o fornecimento
de água potável a toda sua população.
A sexta
pandemia registou-se no período de 1902 a 1923, com epidemias severas na Ásia e
surtos limitados na África e na Europa, sem atingir o Continente Americano.
Neste período, a Europa permaneceu, praticamente, como área livre da epidemia;
os demais países foram tidos como áreas ainda muito receptivas à difusão da
doença.
As seis
pandemias presumivelmente foram ocasionadas pelo biótipo clássico do Vibrio
cholerae, que, pelas suas características de alta virulência, determinava
um alto número de casos, milhares de mortes e um número proporcionalmente menor
de portadores assintomáticos.
De igual
forma, as seis sempre partilharam e seguiram o caminho dos fluxos migratórios, sejam
aqueles associados aos movimentos internos, determinados pelas precárias
condições de vidadas populações, sejam aqueles de longa distância, associados à
circulação dos conquistadores europeus em suas colónias distantes.
Apesar de um
relato sobre a cólera feito por Pizzo (1648), que a descreveu como
“afluxos
diarreicos intermináveis”, a doença foi detectada pela primeira vez no
Brasil
no decorrer
da terceira pandemia, em 1854, no Rio de Janeiro, e em 1855, em Belém do Pará.
A enfermidade havia sido importada pelo vapor brasileiro Imperatriz, procedente
da Cidade do Porto, Portugal, e atingiu posteriormente outros estados das
regiões Norte, Nordeste, Sul e Sudeste, tendo sido registados, até 1867, aproximadamente200
mil óbitos.
Em 1867 e
1869, no decorrer da quarta pandemia, a cólera alcançou novamente o Brasil,
estendendo-se desta vez do Nordeste ao Rio Grande do Sul, além de atingir as
tropas brasileiras e argentinas que lutavam na guerra do Paraguai. Durante a
quinta pandemia, também foram registados surtos importantes no Brasil.
A sétima
pandemia, ainda em curso, se iniciou em 1961, quando o Vibrio cholerae, biótipo
El Tor, ultrapassou os limites de uma área endémica em Célebes, Indonésia, e
estendeu-se a outros países da Ásia Oriental.
Reforçada
pelos deslocamentos da população, mediante os movimentos migratórios, a
pandemia chegou ao Bangladesh no final de 1963 e à União Soviética, ao Irã e ao
Iraque em 1965 e 1966. Em 1970, a cólera invadiu a África Ocidental e se
dispersou rapidamente ao longo da costa e das vias fluviais. Nos anos
seguintes, a cólera adentrou em países industrializados; porém, a eficiência
dos serviços de saúde, do sistema de vigilância epidemiológica e, sobretudo,
das condições de saneamento ambiental não permitiu a sua instalação.
Em 1971, foi registado
um caso da doença entre frequentadores de uma estação de água mineral em
Portugal. A enfermidade atingiu a Itália em 1973, ano em que se registrou um
caso nos Estados Unidos (Texas), de origem não identificada. Em 1974, ocorreu
um caso importado no Canadá. Em 1977 e 1978, registaram-se pequenos surtos no
Japão. Em 1978,ocorreram infecções esporádicas na Louisiana (EUA), com oito
casos e três infecções assintomáticas.
Em 1981, um
surto afectou 16 pessoas no Texas. Em 1986, foi novamente registado
um surto na
Louisiana, que acometeu 18 pessoas e foi atribuído ao consumo de mariscos crus.
No período de 1961 a 1989, foram notificados 1.713.057 casos de cólera à Organização
mundial da Saúde (OMS), sendo a grande maioria proveniente da Ásia e da África.
Em 1994, a
Europa, que vinha notificando apenas casos importados, registou um número significativo
de casos autóctones no Leste Europeu. Casos esporádicos, importados, têm
ocorrido em viajantes que regressaram à Europa Ocidental, ao Canadá, aos
Estados Unidos e à Austrália procedentes de áreas por onde há circulação de Vibrio
cholerae O1.
A propagação
da doença para praticamente todo o mundo deve-se aos seguintes factores:
1)
À característica do biótipo El Tor de produzir,
na maioria dos casos, infecções assintomáticas e leves, o que torna difícil
identificar portadores e distinguir a cólera das outras doenças diarreicas
agudas;
2)
Ao significativo incremento dos fluxos
migratórios, de turismo e de comércio;
3)
Às condições precárias de saneamento,
prevalentes em extensas áreas de alguns países;
4)
Aos meios rápidos de transporte;
5)
À falta de uma vacina eficaz; e
6)
Ao grau de imunidade da população.
O início da
sétima pandemia na América Latina ocorreu em 1991, com a ocorrência dos
primeiros casos no Peru e, posteriormente, no Brasil e em outros países
sul-americanos.
Em 5 de Fevereiro
de 1991, o Ministério da Saúde do Peru comunicou à Organização Pan-Americana da
Saúde (Opas), oficialmente, a existência de um surto de cólera no país. Entre os
dias 23 e 29 de Janeiro de 1991, havia sido detectado um número extremamente
elevado de casos de diarreia – atipicamente, em adultos – em Chancay e
Chimbote, localidades situadas no litoral peruano, ao norte de Lima e
distantes, uma da outra, cerca de 400km.
Nas três
semanas seguintes, a epidemia expandiu-se de forma explosiva ao largo desse
litoral, estendendo-se posteriormente pelas regiões da Cordilheira dos Andes e
Amazónia peruana, de forma que, entre 14 e 20 de Abril, a epidemia já havia atingido
todo o país.
No decorrer
de 1991, a cólera propagou-se pelo Continente Americano, atingindo 14 países,
com 391.750 casos confirmados, e causando 4.002 óbitos. No ano de 1992, 20
países notificaram352.300 casos e 2.399 óbitos. Em 1993, 20 países notificaram
204.547 casos e 2.362 óbitos. No ano seguinte, em 1994, 15 países notificaram
12.612 casos e 1.229 óbitos. Deve-se salientar que 65% dos casos notificados em
todo o mundo, no ano de 1993, eram procedentes de países desse continente.
De acordo com
a Opas, observam-se números bastante díspares quanto às taxas de letalidade, que
variam aos extremos de 16,7 para o Belize (1994) e 15,38 para a Venezuela
(1991) para0 (zero) em países como Guiana Francesa, Costa Rica e a própria
Venezuela em 1994.
Para interpretar
tais achados, seriam necessários conhecimentos a respeito de factores que
possam ter influenciado esses números, como a qualidade da assistência médica,
a eficiência dos serviços de vigilância epidemiológica e os critérios
utilizados para o diagnóstico de casos, entre outros. (Manual Integrado de
Vigilância Epidemiológica da Cólera, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).
De acordo com
a um relatório da Direcção Geral de Saúde (DGS), a cólera em Angola tem vindo
progressivamente a diminuir desde a epidemia de 2006, que então provocou 2.773
mortos entre os 69.476 casos registados. A queda acentuou-se no período
2007-2010, quando passou dos 18.390 casos para 1955, com o número de óbitos a
decair dos 515, registados em 2007, para 45, em 2010.
Em 2011, o
número de vítimas voltou a aumentar e os óbitos dispararam: 183 mortos em 2.296
casos, tendo-se registado uma ligeira descida em 2012, que apresentou 135
óbitos entre os 2.198 casos confirmados. A taxa de mortalidade da cólera em
2012 foi de 6 por cento, inferior à do ano anterior, que foi de 8 por cento.
1.5 CAUSAS
Segundo
Horton & Courtejoie (1997), os principais factores que favorecem o surgimento
da cólera são:
Ø
Nível socioeconómico (Higiene).
Ø
Condições da população (Concentração Humana).
Ø
Perca de Ácido – Gastico (Gastrectomia).
1.6 TRANSMISSÃO
A transmissão
faz-se, primariamente, mediante a ingestão de água contaminada com as fezes ou
os vómitos de pacientes ou pelas fezes de portadores; e, secundariamente, pela ingestão
de alimentos que entraram em contacto com a água contaminada, por mãos
contaminadas de doentes, de portadores e de manipuladores dos produtos, bem
como pelas moscas, além do consumo de gelo fabricado com água contaminada.
Peixes, crustáceos e bivalves, marinhos ou dulcícolas, provenientes de águas
contaminadas, comidos crus ou mal cozidos, têm sido responsabilizados por
epidemias e surtos isolados em vários países.
A transmissão
da doença de pessoa para pessoa, por meio de contacto directo, foi responsabilizada
por uma epidemia, em 1970, que afectou regiões africanas desérticas, em plena estação
seca, quando praticamente não existiam reservatórios de água.
Factores como
a concentração de pessoas e o contacto interpessoal directo que rege a vida
africana (saudação feita tocando-se o peito, a boca e a fronte com a mão, bem
como refeições comuns com o uso das mãos) estavam sempre presentes no contexto
de transmissão.
Os autores
afirmam que onde não há uma diluição da densidade microbiana, pela ausência de
água, os surtos comportam-se deforma explosiva, afectando populações inteiras.
Isso pode explicar alguns surtos importantes ocorridos no sertão da Região
Nordeste, na alta estação da seca.
São factores
essenciais para a disseminação da doença as condições deficientes de saneamento
e, em particular, a falta de água potável em quantidade sufi ciente para
atender às necessidades individuais e colectivas. Geralmente, a cólera é confinada
aos grupos de baixo nível socioeconómico.
Mesmo em
epidemias severas, a taxa de ataque da doença raramente excede a 2%.
As moscas
podem transportar, mecanicamente, aos alimentos, os Vibrio cholerae das dejecções
dos indivíduos infectados. Embora as moscas não desempenhem papel importante na
propagação da doença, é necessário telar as janelas e as portas das enfermarias
onde se encontrem doentes de cólera.
Às vezes, as epidemias
de cólera evoluem lentamente durante várias semanas, apresentando um pequeno
número de casos diários ou semanais. Geralmente, a fonte de infecção é uma
grande colecção de água, um rio, um canal contaminado, um açude ou uma lagoa,
que expõem a população a concentrações relativamente baixas de Vibrio
cholerae. No decorrer do tempo, pode ser infectado um grande número de
pessoas, embora os casos com manifestações clínicas só apareçam
esporadicamente.
Nesses casos,
uma investigação cuidadosa frequentemente revela numerosas infecções
inaparentes e pequenos surtos explosivos em grupos familiares que utilizam uma
fonte comum de abastecimento de água e de alimentos.
A
contaminação maciça de mananciais e reservatórios com menor volume de água, bem
como de lençóis freáticos, e a intermitência de distribuição de água na rede de
abastecimento, possibilitando a passagem de águas contaminadas para dentro das
tubulações, quase sempre são responsáveis por epidemias explosivas, que apresentam
um grande número de casos com formas graves[6].
Ingestão de água
ou alimentos contaminados por fezes ou vómitos de doente ou portador. A contaminação
pessoa a pessoa e menos importante na cadeia epidemiológica. A variedade El Tor
persiste na água por muito tempo, o que aumenta a probabilidade de manter sua
transição e circulação. (Doenças Infecciosas e Parasitárias, MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2010. Página 117).
1.7 QUADRO CLÍNICO
Diarreia e vómito
são as manifestações clínicas mais frequentes.
Na forma leve
(em mais de 90% dos casos), o quadro costuma se iniciar de maneira insidiosa,
com diarreia discreta, sem distinção das diarreias comuns, podendo também apresentar
vómitos.
Tal fato tem
importância epidemiológica por constituir a grande maioria dos casos,
participando significativamente da manutenção da cadeia de transmissão. Esse
quadro é comum em crianças, podendo ser acompanhado de febre, o que o torna
ainda menos característico, razão pela qual são exigidos métodos laboratoriais
para a sua confirmação.
Nos casos
graves, mais típicos, embora menos frequentes (menos de 10% do total), o início
é súbito, com diarreia aquosa, abundante e incoercível, com inúmeras dejecções
diárias. As fezes podem se apresentar como água amarelo-esverdeada, sem pus,
muco ou sangue. Em alguns casos, pode haver, de início, a presença de muco.
Embora isto não seja comum em nosso meio, as fezes podem apresentar um aspecto
típico de “água de arroz” (riziforme).
A diarreia e
os vómitos dos casos graves determinam uma extraordinária perda de líquido, que
pode ser de um a dois litros por hora. Tal quadro decreta rápida e intensa desidratação,
que, se não tratada precoce e adequadamente, leva a graves complicações e até
ao óbito.
A evolução
desse processo pode se apresentar com muitas manifestações de desequilíbrio hidroeletrolítico
e metabólico, constatadas por: sede, rápida perda de peso, perda do turgor da
pele, principalmente das mãos (sintoma conhecido como “mãos de lavadeira”),
prostração, olhos fundos com olhar parado e vago, voz sumidiça e cãibras. O
pulso torna-se rápido e débil, surge hipotensão, e a ausculta cardíaca revela
bulhas abafadas. Há cianose e esfriamento de extremidades, colapso periférico,
anúria e coma.
As cãibras
decorrem do distúrbio hidroeletrolítico no nível muscular e podem atingir a
musculatura abdominal, a musculatura dos membros superiores e dos membros
inferiores (panturrilhas, principalmente).
Existem
relatos de algumas variações do quadro, como a “cólera tifóide”, que se caracteriza
pela elevação da temperatura do corpo a 40ºC ou mais, acompanhada de
complicações cuja evolução leva ao óbito.
Existem
também registos da “cólera seca”, em que grande quantidade de líquido fica
retida na luz intestinal e a desidratação ocorre sem que a perda de líquido seja
evidente, o que pode trazer dificuldades iniciais para o diagnóstico.
1.8 DIAGNÓSTICO
1.8.1 Diagnóstico Diferencial
Com todas as
outras doenças diarreicas agudas, principalmente nos casos ocorridos em
crianças.
1.8.2 Diagnóstico Laboratorial
Consiste,
habitualmente, no cultivo de fezes e/ou vómitos em meios apropriados, objectivando
o isolamento e a identificação bioquímica do Vibrio cholerae O1 toxigênico,
bem como a sua subsequente caracterização sorológica.
Recomenda-se
a pesquisa laboratorial de todos os casos suspeitos apenas em áreas sem
evidência de circulação do Vibrio cholerae O1 toxigênico. Em
áreas de circulação comprovada, o diagnóstico laboratorial deverá ser feito em
torno de 10% dos casos em adultos e 100% em crianças menores de 5 anos. Porém,
o tamanho da amostra dependerá do volume dos casos e da capacidade operacional
do laboratório.
Tais exames objectivam
aferir a propriedade do diagnóstico clínico-epidemiológico, monitorizar a
circulação do Vibrio cholerae patogénico na população e avaliar sua
resistência aos antibióticos e às possíveis mudanças de sorotipo em casos
autóctones ou importados. Outros patógenos devem ser pesquisados,
principalmente nos casos negativos para Vibrio cholerae.
Horton e
Courtejoie (1997) recomendam o exame de Ht
(Hematocrito) para determinar o grau de desidratação.
1.8.3 Diagnóstico Clínico-Epidemiológico
É o critério
utilizado na avaliação de um caso suspeito, no qual são correlacionadas
variáveis clínicas e epidemiológicas capazes de definir o diagnóstico sem
investigação laboratorial.
Deve ser
utilizado para pacientes maiores de 5 anos com diarreia aguda, em áreas onde há
evidência de circulação do Vibrio cholerae O1 toxigênico, ou seja, onde
este último foi isolado por meio de cinco ou mais amostras humanas e/ou
ambientais.
O uso do
critério clínico-epidemiológico possibilita maior agilidade ao processo de diagnóstico
e aumenta a sensibilidade do sistema de vigilância epidemiológica na detecção
de casos.
De igual
forma, diminui os custos operacionais do laboratório, liberando-o para o
desempenho de outras actividades, como, por exemplo, os testes de sensibilidade
e resistência aos antibióticos, bem como a pesquisa de Vibrio cholerae O1
toxigênico em amostras ambientais e de alimentos, além da identificação de
outros microrganismos causadores de diarreia.
Para mais
detalhes quanto ao uso desse critério, veja o tópico “Caso confirmado pelo
critério clínico-epidemiológico”.
1.8.4 LABORATÓRIO
Na concepção
da vigilância epidemiológica, o laboratório desempenha um papel de relevância
não só no levantamento das infecções provocadas pelas enterobactérias, mas,
principalmente, no diagnóstico bacteriológico das primeiras evidências de circulação
do V. cholerae (amostras clínicas, ambientais e de alimentos) e na monitorização
das diarreias e do ambiente, após o restabelecimento do silêncio epidemiológico.
Por tal
razão, é fundamental o estabelecimento de uma rede de laboratórios, com pessoal
habilitado na execução do diagnóstico etiológico das infecções intestinais e
com capacidade sufi ciente para isolar e identificar o agente causal da cólera.
1.8.4.1
Colecta
de Amostras
Colecta de
material clínico:
O êxito no
isolamento do V. cholerae depende de uma colecta adequada das fezes,
observando-se os seguintes aspectos:
Ø
As fezes[7] devem
ser colhidas antes da administração de antibióticos ao paciente;
Ø
Recolher preferencialmente de 3 a 5 gramas de
fezes, diarreicas ou não, em recipiente de boca larga, limpos e/ou
esterilizados (não utilizar substâncias químicas);
Ø
Evitar recolher amostras fecais contidas nas
roupas do paciente, na superfície de camas ou no chão;
Ø
Nos casos em que a colecta se realizar em locais
distantes do laboratório, utilizar “swab” retal ou recolher parte das fezes,
contidas no recipiente, com auxílio de um “swab” fecal; em ambos os casos, os
“swabs” devem ser introduzidos no meio de transporte CaryBlair ou em 10 a 20ml
de água peptonada alcalina (pH 8,4–8,6);
Ø
Recomenda-se a colecta de 2 a 3 amostras por
paciente, desde que haja disponibilidade suficiente de material para colecta e
capacidade de processamento laboratorial de todas as amostras encaminhadas.
Transporte de
Amostras:
a)
Qualquer amostra enviada ao laboratório deve ser
previamente rotulada, identificada e acompanhada da “Ficha de Encaminhamento de
Amostras Ambientais e de Alimentos” ou da cópia da “Ficha de Investigação
Epidemiológica” (amostras clínicas) devidamente preenchidas.
b)
As amostras “in natura”, acondicionadas em
frascos de boca larga, devem ser processadas no laboratório até duas horas após
a colecta, se mantidas à temperatura ambiente, ou até cinco horas, se sob
refrigeração (de 4º a 8ºC).
c)
O meio de transporte Cary-Blair conserva, até
quatro semanas, numerosos tipos de bactérias, inclusive vibriões. No entanto,
como o “swab” (retal ou fecal) contém outros microrganismos da flora normal,
recomenda-se processá-lo de 24 a 72 horas após a colecta (a 30ºC) ou até sete
dias, se mantido sob refrigeração (de 4º a 8ºC).
d)
As amostras acondicionadas em tubos de água
peptonada alcalina (APA) devem ser processadas, no laboratório, até 12 horas
após a colecta, se mantidas à temperatura ambiente.
e)
As amostras colectadas por “swab” devem ser
transportadas em Cary-Blair se não forem semeadas de imediato.
f)
Com relação à colecta de material, é importante
que se oriente que esta deve ser feita pelos profissionais de saúde
responsáveis pelo atendimento ao paciente. O mesmo se aplica para as amostras
ambientais, que deverão ser colectadas pela vigilância ambiental e/ou
sanitária. O laboratório só fará a colecta em casos excepcionais.
1.9 TRATAMENTO
O diagnóstico
e o tratamento precoce dos casos de cólera são factores fundamentais para a recuperação
do paciente, alem de diminuírem a contaminação do meio ambiente e propiciarem a
identificação e a vigilância epidemiológica dos comunicantes.
A terapêutica
correcta se fundamenta na reposição rápida e completa da água e dos electrólitos
perdidos pelas fezes e pelos vómitos. Os líquidos serão administrados por via
oral ou parenteral, segundo o estado do paciente. O inicio da terapêutica independente
dos resultados dos exames laboratoriais.
O paciente
suspeito ou com cólera confirmada devera obrigatoriamente iniciar seu tratamento
no local onde receber o primeiro atendimento.
1.9.1 Avaliação Clínica do Paciente
A observação
dos sinais e dos sintomas e fundamental para que se possa classificar o paciente
quanto ao seu estado de hidratação no decorrer da diarreia de qualquer
etiologia, inclusive a causada pela cólera, com a finalidade de identificar o
grau de desidratação e decidir sobre o plano de reposição.
1.9.2 Critérios de Internação
Deve-se
considerar que uma parcela dos pacientes do sector de triagem será transferida para
o sector de internação.
A princípio devem
ser internados:
Ø
Os pacientes com desidratação grave, com ou sem complicações;
Ø
Os pacientes com patologias sistémicas
associadas (diabetes, hipertensão arterial; Sistémica, cardiopatias ou outras
patologias afins);
Ø
As crianças com desnutrição grave;
Ø
Os pacientes idosos;
Ø
As gestantes;
Ø
Os pacientes desacompanhados que sejam
portadores de doenças crónicas;
Ø
Os pacientes residentes em locais distantes que não
tenham tolerância oral plena.
O livro
Doenças Infecciosas e Parasitárias (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010) sugere os
seguintes procedimentos para o tratamento: Formas leves e moderadas, com soro
de reidratação oral (SRO). Formas graves, com hidratação venosa e antibiótico: para
menores de 8 anos, recomenda-se Sulfametoxazol (50mg/kg/dia) +Trimetoprim
(10mg/kg/dia), via oral, de 12/12 horas, por 3 dias; para maiores de 8 anos,
Tetraciclina, 500mg, via oral, de 6/6 horas, por 3dias; para gestantes e
nutrizes, Ampicilina, 500mg, VO, de 6/6 horas, por 3 dias.
1.9.3 FLUÍDO TERAPIA
A avaliação
do estado de hidratação indica a conduta terapêutica, como se segue:
1.9.3.1
Plano
a – Pacientes Sem Sinais de Desidratação
O tratamento
e domiciliar, com a utilização:
·
Da solução de sais de hidratação oral (SRO); e
·
Dos líquidos disponíveis no domicílio (chás,
cozimento de farinha de arroz, agua de coco, soro caseiro, etc.).
Tais líquidos
devem ser usados após cada episódio de evacuação ou vomito, de acordo comas indicações
a seguir:
·
Menores de 2 anos: 50 a 100ml;
·
Maiores de 2 anos: 100 a 200ml;
·
Adultos: a quantidade que aceitarem.
E importante
ressaltar que os refrigerantes não devem ser utilizados, pois, alem de ineficazes
como hidratantes, podem agravar a diarreia.
A alimentação
habitual deve ser mantida e estimulada. Os pacientes ou seus responsáveis
deverão ser orientados para o reconhecimento dos sinais de desidratação e no
sentido de procurar imediatamente o serviço de saúde mais próximo, na eventual
ocorrência dos sinais ou se a diarreia se agravar, apresentar sangue nas fezes
(disenteria) ou febre alta.
1.9.3.2
Plano
B – Pacientes Com Desidratação
Todos os
pacientes desidratados, mas com capacidade de ingerir líquido, devem ser
tratados com solução de sais de reidratação oral (SRO).
Não é
necessário determinar o volume exacto a ser administrado, mas recomenda-se que
seja contínuo, conforme a sede do paciente, até a completa recuperação do
estado de hidratação.
Deve-se
observar se a ingestão é superior às perdas. Para crianças, a orientação é de
100ml/kg, administrados num período não superior a 4 horas.
Se o paciente
vomitar, pode-se reduzir o volume e aumentar a frequência das tomadas. A
solução de SRO pode ser administrada através de sonda naso-gástrica, quando
necessário.
Os vómitos
geralmente cessam após 2 a 3 horas do início da reidratação. Os lactentes
amamentados devem continuar recebendo o leite materno. Para os demais
pacientes, administrar apenas SRO até se completar a reidratação.
Os sinais
clínicos de desidratação desaparecem paulatinamente, durante o período de
reidratação. Todavia, devido à possibilidade de ocorrer rapidamente maior perda
de volume, os pacientes devem ser avaliados com frequência, para se
identificar, oportunamente, necessidades eventuais de volumes adicionais de
solução de SRO.
Uns poucos
pacientes que apresentem perdas fecais intensas podem ter dificuldades para
beber um volume de SRO necessário para manter o estado de hidratação.
No caso de
apresentarem fadiga intensa, vómitos frequentes ou distensão abdominal, deve-se
suspender a reidratação oral e iniciar a hidratação endovenosa.
1.9.3.3
Plano
C – Pacientes com Desidratação Grave ou Choque
Se o paciente
apresentar sinais e sintomas de desidratação grave, com ou sem choque (palidez
acentuada, pulso radial filiforme ou ausente, hipotensão arterial, depressão do
sensório), a sua reidratação deve ser iniciada imediatamente por via
endovenosa, conforme o esquema:
Adultos:
a) Via venosa
periférica – 2 veias de bom calibre: administrar volumes iguais de NaCl a 0,9%
e ringer lactato em, aproximadamente, 10% do peso do paciente, em cerca de duas
horas. Se estiver faltando uma das soluções, usar apenas uma ou a solução
polieletrolítica.
b) Reavaliar
o paciente; se persistirem os sinais de choque, repetir a prescrição; caso
contrário, iniciar balanço hídrico com as mesmas soluções.
c) Administrar
concomitantemente a solução de SRO, em doses pequenas e frequentes, tão logo o
paciente a aceite. Isso acelera a recuperação do paciente e reduz drasticamente
o risco de complicações pelo manejo inadequado.
d) Suspender
a hidratação endovenosa quando o paciente estiver hidratado, com boa tolerância
ao SRO e sem vómitos.
Crianças:
Até que se
instale a reidratação endovenosa, deve-se administrar a solução de SRO através
de sonda naso-gástrica ou conta-gotas.
a)
A reidratação endovenosa deverá seguir o
seguinte esquema:
Tabela 01:Tratamento para pacientes de
5 anos em fase rápida (de expansão)
Solução
1:1
|
Volume
total[8]
|
Tempo de
administração
|
Metade de
soro glicosado a 5% e metade de soro fisiológico.
|
100ml/kg.
|
2
horas.
|
Fonte: Manual
Integrado de Vigilância Epidemiológica da Cólera, 2010.
b)
Administrar a solução de SRO tão logo a criança
a aceite.
c)
Suspender a hidratação endovenosa quando o
paciente estiver hidratado, sem vómitos, num período de 2 horas, e com ingestão
sufi ciente para superar as perdas.
Com o emprego
desses esquemas terapêuticos, a expectativa é a de que a hidratação endovenosa
possa ser dispensada a partir de 3 a 4 horas de sua administração ininterrupta.
Um bom indicador de que o paciente saiu do estado de desidratação grave, ou
choque, é o restabelecimento do pulso radial em termos de frequência e
amplitude (pulso cheio e regular).
O paciente
que tenha passado à hidratação oral deve ficar sob constante avaliação clínica,
considerando-se, inclusive, a possibilidade de seu retorno à reidratação
endovenosa, situação que somente deve ocorrer em reduzido número de casos.
A
hospitalização prolongada é desnecessária e deve ser evitada, pois é sabido que
os pacientes já em reidratação oral podem receber alta desde que a ingestão
oral seja sufi ciente para cobrir as perdas. No momento da alta, os pacientes
devem ser providos com dois ou mais envelopes de SRO e devem ser devidamente
instruídos quanto ao seu preparo e uso, quanto à alimentação adequada e à
ingestão de líquidos[9].
Soluções
venosas que podem ser utilizadas em caso de cólera:
Solução
polieletrolítica (composição em mMol/l)
Sódio .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . 90
Potássio. .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . . 20
Cloro .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . 80
Acetato .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . . . 30
Dextrose .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . 111
Osmolaridade .
. . .
. . .
311mOsm/kg H2O
Solução a ser
preparada localmente
Solução de
glicose[10] a
5%. .
. . .
. . .1.000ml
Cloreto de
sódio a 20%. . .
. . .
. . . 15ml
Cloreto de
potássio a 10% . .
. . .
. . 15ml
Bicarbonato
de sódio a 8,4 . .
. . .
. . 20ml
1.9.4 ANTIBIOTICOTERAPIA
Nos casos
graves de cólera, a antibioticoterapia contribui para reduzir o volume e a
duração da diarreia, quando instituída no decurso das primeiras 24 horas, a
partir do início dos sintomas. Sua administração deve ser por via oral quando
cessam os vómitos, em geral após um período de 3 a 4 horas do início da
reidratação.
A utilização
de preparados injectáveis, mais onerosos, não apresenta nenhuma vantagem
(lembrar que o V. cholerae não invade a mucosa, razão pela qual o uso de
antibiótico por via parenteral é pouco efectivo).
Nos pacientes
maiores de 8 anos, o antibiótico de escolha é a tetraciclina, na dose de 500mg
de 6 em 6 horas durante 3 dias. Nos pacientes com menos de 40kg, a dose deve
ser de 50mg/ kg/dia, dividida em 4 tomadas.
Podem ser utilizadas
também a doxiciclina (300mg em dose única) ou a furazolidona (100mg de 6 em 6
horas por 3 dias) ou, ainda, a eritromicina (500mg de 6 em 6 horas – 3 doses).
Para gestantes e nutrizes é recomendado o uso de ampicilina, na dose de 500mg
de 6 em 6 horas por 3 dias.
Para os
menores de 8 anos tem-se recomendado o uso de sulfametoxazol (50mg/kg/dia),
aliado a trimetoprim (10mg/kg/dia), de 12 em 12 horas por 3 dias.
Nos casos de
choque, a administração deve se iniciar logo que o paciente saia esse estado e
recupere a capacidade de ingerir com segurança.
A antibioticoterapia
é especialmente benéfica nos casos de desidratação grave. O uso de antibióticos
no tratamento dos outros casos, que são a grande maioria, apesar de reduzir a
excreção fecal, não contribui sobremaneira para evitar a evolução da moléstia e
pode acelerar o aparecimento de cepas resistentes de V. cholerae, não trazendo
nenhum benefício aos pacientes.
Deve-se
ressaltar que os estudos feitos quanto à resistência aos antibióticos mantêm a
tetraciclina como primeira opção terapêutica, inclusive nos casos devidos ao V.
cholerae O139, que tem se mostrado resistente à furazolidona e ao sulfametoxazol
aliado ao trimetoprim. Deve-se suspeitar de resistência ao antibiótico quando a
diarreia persistir por mais de 48 horas após o início de sua administração.
1.9.5 ALIMENTAÇÃO
Paralelamente
à administração da solução de SRO, deve-se permitir ao paciente a ingestão de
água. A alimentação pode ser reiniciada assim que esteja concluída a
reidratação do paciente e tenham cessado os vómitos, o que geralmente ocorre
após 3 a 4 horas de tratamento. Para os lactentes deverá ser incentivada a manutenção
do aleitamento materno.
As crianças
com aleitamento misto ou artificial devem continuar a receber a dieta habitual.
Os alimentos, inclusive o leite de vaca, não devem ser diluídos para não
reduzir o aporte calórico. É importante lembrar que os líquidos de hidratação
oral, inclusive a solução de SRO, não substituem a alimentação.
1.9.6 CRITÉRIOS DE ALTA
Somente devem
receber alta os pacientes que estejam hidratados, que apresentem tolerância
oral plena e função renal normal, avaliada por franca diurese.
1.9.7 COMPLICAÇÕES
As
complicações da cólera decorrem fundamentalmente da depleção hidrossalina,
imposta pela diarreia e pelos vómitos, e ocorrem mais frequentemente nos indivíduos
idosos, diabéticos ou com patologia cardíaca prévia. A desidratação não corrigida
levará a uma deterioração progressiva da circulação, da função renal e do
balanço metabólico, produzindo dano irreversível a todos os sistemas do
organismo
e,
consequentemente, acarretando:
Ø
Choque hipovolêmico;
Ø
Necrose tubular renal;
Ø
Paralisia do íleo/atonia intestinal;
Ø
Hipocalemia, levando a arritmias cardíacas;
Ø
Hipoglicemia, com convulsões e coma em crianças;
Ø
Aborto e parto prematuro em casos com choque
hipovolêmico.
1.9.7.1
Complicação
Devida Ao Manejo Inadequado
O uso de soro
endovenoso (EV) em excesso pode levar o paciente a apresentar um quadro de
edema pulmonar, principalmente quando não se corrige a acidose metabólica. Tal
caso é mais frequente quando se utiliza soro EV exclusivamente, sem associá-lo
à reidratação por via oral com SRO.
Seguindo-se
as orientações correctamente, o risco de edema pulmonar é praticamente ausente.
A solução de SRO jamais será causa de edema pulmonar.
Os pacientes
idosos, hipertensos ou cardiopatas devem ser reidratados com maior cautela, sob
rigorosa vigilância, com realização de ausculta pulmonar, pesquisa de
estertores em bases, verificação da pressão arterial e observação da frequência
respiratória.
Por outro
lado, a insuficiência renal pode surgir como consequência do uso insuficiente
de solução endovenosa ou pelo choque hipovolêmico prolongado ou de repetição,
principalmente em pacientes maiores de 60 anos. Deve ser evitada com a correcção
rápida da desidratação grave e da manutenção do estado de hidratação, de acordo
com as orientações apresentadas neste capítulo.
1.10
CUIDADOS
DE ENFERMAGEM
Uma medida
altamente eficaz para reduzir a morbimortalidade causada pelas diarreias, e particularmente
pela cólera, é a instituição do tratamento precoce e adequado aos pacientes
sintomáticos, assim como o uso de medidas de biossegurança, para se evitar que
os serviços de saúde sejam transformados em fontes de transmissão.
Para tal fim,
os serviços prestados pelas unidades de saúde, independentemente do seu grau de
complexidade e da natureza da entidade, deverão estar organizados de modo a
garantir que o atendimento dos casos seja feito da melhor forma possível,
optimizando os recursos disponíveis.
Essa
organização deve ser iniciada pela adequação das unidades de saúde de acordo
com a demanda e a evolução das diarreias no seu local de abrangência; por tal
razão, não será necessária, obrigatoriamente, a construção de uma área física
específica para tal finalidade.
O
envolvimento de toda a equipe multidisciplinar é imprescindível e favorecerá a adopção
das medidas apropriadas, de acordo com o caso, no menor tempo possível.
Todo o
pessoal médico e de enfermagem deverá receber treinamento (ou estar treinado)
nas técnicas realmente efectivas utilizadas para o manejo de pacientes com
diarreia aguda. Os procedimentos relativos ao manejo dos casos de cólera são
semelhantes aos destinados aos casos de diarreia por outras causas. Porém, os
surtos de cólera geram maior demanda dos serviços de atendimento, pelo aumento
dos casos de diarreia nas áreas onde ocorrem, com maior frequência de desidratação
grave.
As unidades
de atendimento deverão compor um sistema regionalizado e hierarquizado, com fluxos
preestabelecidos de referência e contrarreferência, levando em consideração a
facilidade de acesso dos pacientes, os meios de remoção (quando necessária) e a
cobertura da população de suas áreas de abrangência.
A OMS
recomenda que se utilize, para fins de cálculo da cobertura e dos insumos
necessários para o tratamento dos pacientes de cólera, uma taxa de ataque esperada
de 0,2%. Isso significa que, para uma população de 100.000 habitantes, existe a
previsão do surgimento de 200 pacientes durante um surto de cólera.
Destes 200,
estima-se que 40 apresentarão desidratação grave, cujo tratamento exigirá
reidratação endovenosa e por via oral (SRO), além de antibióticos, e 160
pacientes apresentarão algum grau de desidratação (ou mesmo nenhum), cujo tratamento
exigirá apenas ingestão de SRO.
A taxa de
ataque durante um surto pode ultrapassar 2% em algumas localidades. Porém, a
previsão de 0,2% é sufi ciente para garantir a efectividade das acções durante
as primeiras semanas, tempo sufi ciente para que as necessidades possam ser
redimensionadas, de acordo com a demanda observada.
Para
responder rapidamente a um surto e prevenir os óbitos pela cólera, os serviços
de saúde devem ter acesso a suprimentos essenciais, particularmente sais de reidratação
oral, soros endovenosos e antibióticos apropriados.
Durante um
surto de cólera, esses suprimentos serão requeridos em quantidades maiores do
que a normal. Logo, estoques adicionais devem ser colocados em pontos
apropriados do sistema de distribuição de medicamentos. Isso pode incluir
pequenos estoques em centros de saúde de hospitais, maiores estoques em níveis
regionais, distritais ou locais, e estoques para situações emergenciais em
centros de distribuição.
Os estoques
não devem ser reservados especificamente para a cólera, mas o sistema de
distribuição deverá absorvê-los de acordo com a sua demanda, com a finalidade
de manter sua rotatividade e evitar o seu vencimento por falta de uso.
Será
necessário, portanto, designar pessoal responsável para coordenar a aquisição e
a distribuição dos medicamentos e dos insumos de urgência, com o objectivo de
atender à demanda, no âmbito da padronização, assegurando, assim, a assistência
adequada à população.
Quando surgir
um surto provável ou confirmado de cólera em localidades cujos serviços de
saúde sejam deficientes, devem ser rapidamente destacadas, para as áreas de
risco, equipes móveis compostas por profissionais capacitados para:
Ø
Implantar a(s) unidade(s) de tratamento de
cólera (UTC);
Ø
Ministrar treinamento em serviço no manejo de
pacientes e no cumprimento às normas de biossegurança para os profissionais
locais;
Ø
Estabelecer os fluxos de informação e realizar
estudos para determinar os mecanismos de transmissão;
Ø
Colectar amostras clínicas, ambientais e de
alimentos para a pesquisa e a identificação do agente etiológico;
Ø
Realizar actividades de comunicação e de
educação em saúde, com a finalidade de envolver a população nas actividades de
prevenção e controle, bem como para evitar o pânico.
1.10.1 Orientação Após A Alta
A avaliação
do estado de hidratação do paciente determinará a possibilidade de alta, que
será dada sempre que o paciente estiver com hidratação restabelecida. A rotina
de alta da unidade de saúde deverá ser obedecida, sendo que é recomendada a
observação aos seguintes pontos:
1)
Avaliação médica com assinatura da alta no
prontuário;
2)
Devolução dos pertences (vestuários
desinfectados, etc.) dos pacientes;
3)
Encaminhamento do paciente à sala de orientação
pós-alta;
4)
Orientação do paciente quanto à doença, à higiene
pessoal, à alimentação e ao tratamento da água;
5)
Ênfase na importância do SRO e do soro caseiro;
6)
Esclarecimento do paciente sobre a prevenção e o
controle das doenças diarreicas;
7)
Fornecimento de cartilhas ou folhetos sobre a
prevenção da cólera;
8)
Orientação do paciente sobre a administração do
medicamento, no caso de alta com prescrição de antibióticos;
9)
Realização das providências necessárias ao
deslocamento do paciente até o domicílio;
10) Fornecimento
de informações sobre os cuidados com fezes e vómitos em domicílio e orientações
sobre como fazer a desinfecção química com solução clorada, deixando os dejectos
em contacto com a solução por uma hora e desprezando-os no sanitário;
11) Fornecer
orientações ao paciente sobre como enterrar os dejectos, caso o domicílio não
tenha instalações.
1.10.2 Cuidados Com o Corpo Após a Morte
Algumas actividades
relacionadas com os ritos funerários podem contribuir para a propagação da
cólera. Os velórios reúnem pessoas, muitas vezes de regiões distantes, algumas
inclusive provenientes de áreas poupadas pela doença, que poderão levar o V.
cholerae quando do seu retorno.
É de suma
importância alertar a população no sentido de limitar ao máximo as cerimónias
fúnebres, o banho ritual dos defuntos e as refeições servidas costumeiramente
àqueles que comparecem aos velórios. Para reduzir a propagação da infecção,
faz-se necessário que os enterros sejam feitos de forma rápida e na mesma
localidade onde aconteceu o óbito.
As pessoas
que se ocuparam do doente e da limpeza do local, antes do óbito, e aquelas que
fazem o preparo do corpo após o falecimento correm os riscos de exposição a
doses maciças de vibriões. Muitas vezes, são essas mesmas pessoas que
prepararão os alimentos que serão servidos nos velórios. O abandono desta
prática reduzirá consideravelmente o risco de transmissão da infecção.
Independentemente
do local onde ocorrer o óbito (Unidade diarreica – UD, Unidade de Tratamento da
Cólera – UTC ou no domicílio da vítima), o preparo do corpo após a morte deverá
seguir a técnica de precauções entéricas, tendo como base o seguinte roteiro:
a)
Constatar o óbito e comunicar o fato aos
familiares, caso não tenham ainda seu conhecimento;
b)
Fazer assepsia do corpo com solução clorada e
tamponar os orifícios naturais do corpo com algodão embebido em solução
clorada;
c)
Fixar o cartão de identificação directamente no
corpo (em dois locais);
d)
Envolver o corpo com lençol de tecido,
identificando-o com outro cartão;
e)
Encaminhar o corpo até o necrotério ou o serviço
de anatomia patológica, com o boletim de óbito devidamente preenchido;
f)
Orientar familiares e profissionais de forma que
o caixão seja mantido fechado até o sepultamento, que deverá ser feito o mais
rápido possível.
1.11
PREVENÇÃO
Quando o V.
cholerae é introduzido em áreas com precárias condições sanitárias, o risco de
circulação é bastante elevado e, principalmente, quando não existe um bom
sistema de abastecimento de água potável para as comunidades, o principal instrumento
para o controle da Cólera, é prover as populações sob risco, de adequada infra-estrutura
de saneamento (água, esgotamento sanitário e colecta e disposição de lixo), o
que exige investimentos sociais do poder público.
A rede
assistencial deve estar estruturada e capacitada para a detecção precoce e o
manejo adequado dos casos.
Deve-se ter
cuidados com os vómitos e as fezes dos pacientes no domicílio. É importante
informar sobre a necessidade da lavagem rigorosa das mãos e procedimentos
básicos de higiene. Isolamento entérico nos casos hospitalizados, com
desinfecção concorrente de fezes, vómitos, vestuário e roupa de cama dos pacientes.
A quimioprofilaxia de contactos não é indicada por não ser eficaz para conter a
propagação dos casos.
Além disso, o
uso de antibiótico altera a chora intestinal, modificando a susceptibilidade à
infecção, podendo provocar o aparecimento de cepas resistentes. A vacinação
apresenta baixa eficácia (50%), curta duração de imunidade (3 a 6 meses) e não
evita a infecção assintomática. Para vigiar e detectar precocemente a
circulação do agente preconiza-se: fortalecimento da monitorização das doenças
diarréicas agudas, nos municípios do país, e a monitorização ambiental para
pesquisa de V. cholerae, no ambiente.
É importante
ressaltar que no caso do V. cholerae El Tor, a relação
entre doentes e assintomáticos é muito alta, podendo haver de 30 a 100
assintomáticos para cada indivíduo doente; assim, as medidas de prevenção e
controle devem ser direccionadas a toda a comunidade, para garantir o impacto
desejado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENENSON, A. (Ed.). Controle
das doenças transmissíveis no homem. 13. ed. Washington: OMS, 1993. 420 p.
COSTA, G. A.; HOFER, E.
Isolamento e identificação de enterobactérias. Rio de Janeiro: Instituto
Osvaldo Cruz, 1972. (Série de monografias).
Doenças infecciosas e
parasitárias: guia de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em
Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 8. ed. rev. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2010.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS.
Manual de organização e procedimentos hospitalares. São Paulo: PROAHSA,
FGV/EAESP/HC/FMUSP, 1987.
Manual integrado de Vigilância
Epidemiológica da Cólera / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em
Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 2. ed. rev. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2010.
MORBIDITY AND MORTALITY WEEKLY REPORT. Imported
cholera associated with a newly described toxigenic Vibrio cholerae O139
Strain: California, 1993. New York, v. 42, n. 26, p. 501-503, jul. 1993.
ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA
SAÚDE. Área de Desenvolvimento de Programas de Saúde. Programa de Saúde Pública
Veterinária. Riscos de transmissão de cólera por alimentos. Washington, 1991.
RESTREPO, M. et al. Cólera.
Bogotá: Ministerio de Salud, Instituto Nacional de Salud, 1991. 47 p. (Serie de
notas e informes técnicos, 19).
VIEIRA, J. M. Cólera. In:
Veronesi, R. Doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara-Koogan, 1991, p. 417-426.
[1]
TAVARES, WALTER. Rotinas de Diagnóstico e Tratamento das Doenças Infecciosas e
Parasitárias, 2ª Ed. Editara Atheneu, 2009.
[2]
G. HORTO Net J. COURTEJOIE. De la maladie à la santé, St. Paul, 1997.
[3]
A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde - Décima Revisão (CID-10) corresponde a um esforço internacional para
listagem dos agravos à saúde, relacionando seus respectivos códigos. A cada
estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código,
que contém até 6 caracteres. Tais categorias podem incluir um conjunto de
doenças semelhantes. Está dividida em 22 capítulos. O Capítulo I relaciona
Algumas doenças infecciosas e parasitárias
[4]MINISTÉRIO
DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de
Vigilância Epidemiológica. Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da
Cólera. 2. ed. rev. – Brasília, 2010.
[5]
MINISTÉRIO DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento
de Vigilância Epidemiológica. Doenças infecciosas e parasitárias : guia de
bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,8. ed. rev. –
Brasília, 2010.
[6]MINISTÉRIO
DA SAÚDE (BRASIL). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de
Vigilância Epidemiológica. Manual integrado de Vigilância Epidemiológica da
Cólera. 2. ed. rev. – Brasília, 2010. pág. 20-21
[7]Recomenda-se
a técnica do papel de filtro, de acordo com Dold e Ketterer (1944) e Barua
(1974): – tiras de papel de filtro, tipo xarope ou de mata-borrão, com
dimensões de 2,5cm de largura por 6cm de comprimento, constituem um recurso
muito útil para a remessa de espécimes fecais ao laboratório; as fezes
diarreicas, ou aquelas emulsionadas em água, devem ser espalhadas em 2/3 de uma
das superfícies do papel, com auxílio de um fragmento de madeira ou de qualquer
outro material semelhante disponível no momento; – realizada essa etapa, as
tiras de papel de filtro devem ser acondicionadas em invólucros plásticos,
perfeitamente vedados, para evitar a dissecação do material fecal, a fim de que
seja mantida a viabilidade do vibrião colérico.
[8]Na
fase rápida, não se recomenda a utilização de solução de ringer lactato ou de
outras que também possam induzir hipernatremia, principalmente em crianças
menores de 2 anos. Não utilizar solução glicofisiológica disponível no mercado,
pois as concentrações de cloreto de sódio e de glicose são diferentes da
solução 1:1 de SF e de SG a 5%.
[9]A
experiência tem mostrado que alguns pacientes que não apresentavam sinais de
desidratação no momento da primeira avaliação, mas com história de diarreia
aquosa e abundante, tendo sido liberados para seus domicílios com SRO, voltavam
ao serviço após 3 a 4 horas, apresentando desidratação grave. Tais pacientes
devem ser avaliados cuidadosamente, tanto por meio da história clínica quanto
pelo exame físico, e devem ingerir a solução de SRO na unidade de saúde por um
período de 4 horas antes da sua liberação.
[10]A
utilização isolada de solução de glicose é ineficaz e não deve ser prescrita,
uma vez que provoca diureses osmóticas (aumentando ainda mais as perdas) e até
choque com hiponatremia e hiperglicemia.
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